Professando a greve, afirmando outra educação

Profissionais de educação do município do Rio de Janeiro tomam as ruas da Zona Sul.

Profissionais de educação do município do Rio de Janeiro tomam as ruas da Zona Sul.

Mais uma vez as ruas do Rio de Janeiro, mais especificamente da Zona Sul da cidade, foram tomadas por pessoas indignadas. Desta vez, entretanto, a mobilização era de caráter menos enigmático que as recentes jornadas de junho em todo o país (que no Rio de Janeiro consistiram no tempo, afirmando-se continuamente nos últimos quase três meses). Os indignados que ganhavam a arena pública, davam nó no trânsito e produziam um belo movimento eram os profissionais da rede municipal de educação do Rio de Janeiro. Após quase vinte anos sem mobilizações das classes profissionais envolvidas com a educação na cidade do Rio de Janeiro, a indignação represada irrompeu em fluxo.

Após a deflagração da greve, na assembléia realizada no último dia 8 de agosto, a única reunião realizada entre o executivo municipal e o sindicato estadual dos profissionais de educação do Rio de Janeiro (SEPE-RJ), no dia 13 de agosto, não passou de demonstração de intransigência tecnocrática. As várias reivindicações (plano de cargos e salários, melhores condições de trabalho, reajuste salarial, autonomização do trabalho pedagógico com o recuo da política meritocrática, pautada exclusivamente na concessão de complementações precarizantes de renda em contrapartida ao cumprimento de metas estatísticas, entre outras) foram sumariamente descartadas, sem que sequer se acenasse com a disponibilidade a uma conversação franca e direta sobre os pontos reclamados.

A resposta dos profissionais ao poder institucional se deu nas ruas, onde professores, agentes educacionais, merendeiros e outros profissionais da educação pública municipal, declararam publicamente, com cartazes, gritos e cantos, seus desejos e insatisfações. Para colocar de forma mais resumida, as mais de 15 mil pessoas que tomaram as ruas professaram a greve como afirmação de uma outra educação desejável. O ato de professar, no entanto, não trata somente de declarar um impasse, mas é, ao mesmo tempo, declaração performativa que se instaura no compromisso de uma responsabilidade¹.

O que os professores desejam é uma outra educação não apenas correspondente aos pontos corporativos listados nas reivindicações, mas uma outra educação que crie condições de pensamento e exercício de uma nova pedagogia, que, constitua um novo compromisso de responsabilidade e, portanto, coloque os problemas da educação em patamar diferente, no plano de um fazer profissional distinto. Menos preocupado, por exemplo, com questões de ordem estatístico-administrativa (as metas a bater e toda a tensão micropolítica que elas instauram no cotidiano escolar) e mais voltado para a invenção de novas formas de produção do saber.

O choque neoliberal que se abateu sobre o direito à educação por todo o mundo caracteriza-se por ser, no plano salarial, a modulação pós-fordista da relação de trabalho. O economista suíço Christian Marazzi caracterizou essa nova relação como ‘pensadas para gerir a incerteza’. Poder-se-ia acrescentar: gerir a incerteza na e pela incerteza, o ‘duplo movimento da dinâmica salarial’ se definindo na reversibilidade dos rendimentos individuais que acabam por compôr a renda do trabalhador do setor. Qualquer semelhança com os bônus concedidos por metas não é mera coincidência².

A dinâmica neoliberal que se instaura no setor educacional público tende a fazer a educação passar de um direito a um serviço, deslocando-a do plano do estado e, de certa forma, do comum, ao plano do mercado — a proliferação de iniciativas de patrocínio de determinadas unidades escolares por grandes empresas, bancos e outras expressões do grande capital, respondem por outro aspecto do mesmo problema. Com a injeção massiva de recursos viabilizam-se não apenas melhores resultados, mas produz-se, a um só tempo, um cenário onde tais escolas abrem frentes de expansão da forma neoliberal de administração do direito à educação, fortalecendo as marcas das empresas patrocinadoras (cujos investimentos são retornados com a capitalização oriunda da ‘responsabilidade social’ demonstrada) e desgastando-se a forma republicana de gestão, marcada pelos resultados sempre menos eficientes, das escolas precarizadas. Os cavalos de Troia da expansão neoliberal da gestão educacional espalham-se e vão minando as bases do ensino público.

O cenário descrito nem de longe esgota os superabundantes problemas com as quais alunos, professores e outros profissionais de educação se debatem no cotidiano escolar, mas dá o tom geral da vaga que se alastra nas escolas do município do Rio de Janeiro. É contra esse estado geral de coisas que os professores professam o desejo de uma outra escola e de uma outra pedagogia. Pois será possível que se possa efetivar um real debate sobre a defasagem, o verdadeiro abismo que se coloca entre a formação dos professores e os desafios que há a enfrentar, a prática docente real ainda se assemelhando constrangedoramente àquela com a qual nossos avós eram instruídos e nenhum pouco com o que lemos nas formulações recentes da pedagogia e das várias áreas de reflexão sobre o ensino das diversas disciplinas que compõem o currículo? Como avançar na luta por uma outra pedagogia, sem, ao mesmo tempo, avançar também na luta por uma outra educação?

Nesse sentido, a tomada de posição dos funcionários da educação a que se assistiu no dia de ontem, demonstra a inclinação massiva de educadores e outros agentes do cotidiano escolar a se engajar numa luta contra o estado geral de precarização e a favor de novas formas de organização da escola e dos processos de ensino-aprendizagem. Professar a greve contra o neoliberalismo educacional, fazer uma profissão de fé noutra educação, noutra pedagogia, capaz de potencializar a criatividade, ao invés de insistir nas fórmulas, pedagogicamente caducas — embora politicamente eficientíssimas na manutenção de consensos paralisadores — da disciplina (que não é um problema moral, e tampouco apenas um reflexo das condições sócio-econômicas dos alunos, mas antes expressão daquele abismo entre práticas novecentistas e alunos que tem o mundo conectado em seus bolsos) é a agenda que se coloca e que a indignação alegre dos manifestantes de ontem faz surgir no horizonte.

Notas:

1. O tom geral do artigo se inspira nas reflexões de Jacques Derrida sobre a necessidade de se ‘professar a profissão de professor’ como exercício (ético, performativo, criador) de responsabilidade, cf. Jacques Derrida, A universidade sem condição, 2003 [2001], pp. 38-40.

2. Christian Marazzi, O lugar das meias: a virada linguística da economia e seus efeitos sobre a política, 2009 [1996], pp. 42-54 (citação à p. 45).

O ‘laicatolicismo’ brasileiro: a violência doce da razão católica

Não, não é. E nunca foi.

Não, não é. E nunca foi.

No laicatolicismo brasileiro, tudo é laico até que não seja católico.

A vinda do Papa Francisco para a Jornada Mundial da Juventude é o acontecimento da semana. O Papa está constantemente embutido nas programações de diversos canais televisivos e é o assunto de todas as rodas de conversa. No Rio de Janeiro, onde as ruas estão tomadas por ‘peregrinos’, é tema onipresente em todas as rodas possíveis; nos bares, restaurantes, nos ônibus… mesmo porque em todos esses lugares é impossível não topar com a indumentária padronizada dos fiéis.

No campo da política, as declarações do Papa reverberam pelos espaços prováveis de acolhimento das opiniões manifestadas (e mesmo nos nem tão prováveis assim) e se chocam com a crítica minoritária. E é a respeito da reverberação improvável e do excessivo comedimento no ataque às posições reacionárias que se trata esse texto. Não tanto para insistir nas obviedades, sempre tão pouco óbvias infelizmente, do conservadorismo atroz de posturas como a oposição a concessão de direitos à população LGBTT, a pretensão de controlar os corpos de homens e, principalmente, mulheres, ou da interdição moralista do debate sobre a descriminalização das drogas (que se alinha na trincheira da guerra às drogas que, de fato, é guerra aos pretos e pobres). Mas para tentar problematizar o verdadeiro bloqueio anti-crítica que se instaura quando essas opiniões, tão severamente criticadas quando expressas por lideranças evangélicas como Silas Malafaia ou Marco Feliciano, estão inscritas no discurso papal e católico. Bloqueio em que se alinham não apenas conservadores, mas também liberais sinceros e pessoas inequivocamente de esquerda. O que explicaria a atitude de comedimento e não-enfrentamento frente aos descalabros papais, se os mesmos descalabros provocam a ira dos mesmos atores quando ditas e defendidas por líderes evangélicos?

Primeiramente, algumas pessoas de esquerda (como o respeitado teólogo da libertação Leonardo Boff) são da opinião de que Mario Bergoglio, o Papa Francisco, representa uma ruptura com a orientação reacionária dos últimos papados e reaproximaria a Igreja Católica de um maior contato com os pobres e despossuídos, bem como creem que ele renovará as práticas da instituição frente à necessidade de uma igreja mais militante e combatente (sua ordenação jesuítica — os jesuítas tendo origem na expansão contra-reformadora que impulsionou a ICAR à disputa dos fiéis no além-mar e sendo denominados como ‘exército de Cristo’ — confirmaria essa inclinação). Diante dessa leitura (cujo endosso não damos em hipótese alguma, preferindo seguir as boas análises de Breno Altman e Hugo Albuquerque, onde Francisco se aproxima mais a um Wojtyla do século XXI, imiscuindo-se no campo dileto das esquerdas bem-sucedidas da América Latina, o combate à pobreza e à desigualdade, e tendo como objetivo ser, tal como o polonês João Paulo II, uma ponta de lança da ofensiva da direita neoliberal no continente), a continuidade do corpo doutrinário conservador parece aceitável em face dos avanços que se percebe. Em segundo lugar, apontam-se diversos motivos para não dar bom combate às posições reacionárias do catolicismo: o Papa e os católicos não seriam virulentos como os evangélicos (o que ficou bastante discutível com fatos recentíssimos), a crítica seria contraproducente politicamente, haveria a necessidade de se respeitar a fé alheia, entre outras. Em comum, apenas a manifestação de uma tergiversação variada e sem nenhum fundamento realmente razoável. Mais do que isso, a manifestação do que se pode chamar o ‘laicatolicismo’ brasileiro.

O que chamo de laicatolicismo brasileiro é essa violência doce da razão católica que domina a conformação das opiniões, o consenso por trás da formação do consenso, o horizonte mesmo onde se pode pensar as relações das religiões com a vida, a política, ou seja, no seu atravessamento biopolítico. Porque a situação desses debates, a linha de frente da defesa do discurso papal sendo capitaneada por pessoas de esquerda e sinceros adversários do fundamentalismo de matriz evangélica, não cessa de o provar: no Brasil, tudo é laico, até que não seja católico.

Assim, os gritos contra a ‘teocracia evangélica’ ignoram olimpicamente que a capacidade desse grupo sócio-relogioso ou mesmo sua expressão político-institucional — mesmo a partir do crescimento das últimas décadas — são insuficientes para sustentar tais posições como consensuais, e que, portanto, é necessário que uma maioria laico-católica se poste na retaguarda das escaramuças neopentecostais. Qualquer motivo ou razão para indignar-se seletivamente contra os evangélicos, ou não indignar-se contra os católicos, é brandido. E isso, justamente, porque é a razão católica que comanda os termos do debate, que diz o que pode e o que não pode ser dito.

Dessa forma, ignora-se, por exemplo, o histórico envolvimento da Igreja católica com movimentos anti-democráticos (não à toa as marchas de 1964 eram marchas ‘com Deus’) e todas as suas ofensivas contra direitos de minorias e ataques à laicidade do estado*: o ensino religioso em escolas públicas, o ataque aos direitos das mulheres, como no caso atual do PLC 03/2013, ou a intervenção contra a garantia dos direitos reprodutivos no documento final da Rio+20, os gastos públicos com um evento do porte da JMJ, ou mesmo a condenação do atual Papa a concessão de direitos civis à população LGBTT (presente em sua primeira encíclica).

Ao laicatolicismo brasileiro, fortíssimo — capaz de (eu vi!) fazer sorrir os moradores da Tijuca, bairro de classe média do Rio de Janeiro, fortemente ciosos do seu direito à imperturbabilidade, ante o estrondo de um bumbo tocado nas dependências de um mercado, com direito a exclamações a respeito da beleza daquela ‘fé’ –, some-se o estilo popularesco de Sua Santidade e talvez se consiga compreender como, à esquerda e à direita, todos parecem magnetizados pelo Papa dos pobres o seu rebanho.

No fundamental, somos, os brasileiros, católicos, mesmo os que não somos. Concedemos naturalidade à postura doutrinária conservadora dos mesmos, quando denunciamos com vigor os mesmos dogmas na boca de outros. As determinações desse fenômeno são históricas e sociais, estão além do campo estritamente religioso: tem mais que ver com a nossa formação enquanto país. Forjados na expansão colonial européia, fomos também forjados como território exclusivo de expansão da fé católica, embalada no contra-reformismo tridentino. Ao exclusivo comercial metropolitano correspondia um exclusivo religioso, cuja resultante foi a oficialização do cristianismo católico como religião nacional.

Da mesma maneira, o laicatolicismo é compromisso de estado: destina-se a tolerância mútua de espaços de atuação e funcionamento (o espaço secular conquistado para o estado sendo, aliás como sempre, uma conquista das lutas sociais e não dádiva concedida desde o céu das classes dirigentes). Nesse panorama, a emergência dos vários matizes de evangélicos, num sentido muito específico, é bastante benéfico para a crítica da crítica laica. Desembaralhando as cartas marcadas do jogo — em busca de um diferencial de competitividade no mercado da fé –, ‘o processo de pluralização do campo religioso brasileiro’, como afirmou Antônio Flávio Pierucci¹, desmonta o consenso e evidencia o mal-estar do secularismo à brasileira. O que não pode passar desapercebido é o correto dimensionamento das forças em jogo, sendo fundamental a percepção de que o grito do fundamentalismo evangélico não existiria sem o silêncio cúmplice (e sócio) da maioria laico-católica (e que em ambos os campos, católico ou evangélico, como em quaisquer campos, há espaço para o trabalho militante da esquerda que queira agenciar-se aos aspectos positivos, certamente existentes). Tendo percebido o que está no palco, não se pode demorar a perceber quem está nos bastidores da produção (do consenso).

* À guisa de manutenção da unidade do texto não aprofundaremos o mérito da questão, mas tampouco a bandeira liberal (irrealizável do ponto de vista prático) do estado laico nos parece uma saída para o problema que se enfrenta.

1. Antônio Flávio Pierucci, ‘Religiões no Brasil’ In: André Botelho & Lília Moritz Schwarcz, Cidadania, um projeto em construção: minorias, justiça e direitos, 2012, p. 67.

As muitas cabeças da hidra: a revolta brasileira no contexto global

Contra um inimigo global, uma multidão comum.

Contra um inimigo global, uma multidão comum.

A hidra tem muitas cabeças, espalhadas pelo mundo, sempre a se renovar, mas o corpo é o mesmo e se articula de forma comum contra um inimigo global.

 
Ainda no calor das primeiras movimentações de monta da multidão brasileira, logo após o 17J e a batalha da ALERJ, esse blog publicou algumas notas a respeito do movimento dos movimentos que se irradiava pelo Brasil. Além de posteriormente ter arriscado uma tentativa de interpretação mais global da situação, procurando enxergar o entrecruzamento das temporalidades que se articulavam na irrupção indignada dos manifestantes nas ruas.

O que proporciona e impulsiona o retorno ao tema (para além do fato de que o ‘tema’ não se foi, a multidão não tendo adormecido — como querem alguns analistas que, na esquerda e na direita, parecem amedrontados com a força das ruas –, mas tendo vindo a se comportar como verdadeiras cabeças de uma hidra que, após serem cortadas pela repressão policial, retornavam em outros lugares, prontas para novo confronto), além de alguns pontos que ficaram por dizer (ou que sequer haviam sido detectados pelo autor naquelas alturas), é a reiterada insistência com que algumas leituras insistem em desqualificar aprioristicamente as manifestações, bem como o fato de outras delas se assentarem em alguns pontos de vista que consideramos errôneos ou contraproducentes.

I. Determinação classista (e moralista) dos movimentos: uma das grandes chaves de leitura da multidão brasileira no campo do governismo (incluindo-se aí boa parte da blogosfera progressista — com algumas ressalvas) é a desqualificação classista do movimento: seria uma multidão de classe média, incapaz de fazer avançar a agenda política brasileira (quando não o ovo de serpente de um golpe ditatorial contra o atual governo) e cuja (suposta) circunscrição social do seu lugar de fala impediria qualquer desencadeamento de um processo novo de redistribuição de riqueza.

O que se poderia chamar de hipótese governista tem diversos problemas (como a convicção com a qual identifica todo o processo multitudinário a uma classe social específica, quando se sabe que as formas de auto-organização da multidão, tal e qual todos os recentes — e nem tão recentes, basta lembrar Seattle e Gênova na longínqua passagem do milênio — simplesmente descentram socialmente as mobilizações), mas vale notar que o principal deles é, de fato, uma miopia assombrosa para com as resultantes do próprio governo que apoiam. Os dez anos de lulismo nunca vem à baila nas análises governistas, não pelo menos para serem contados como possível determinação dos horizontes que permitiram os atuais protestos.

Ora, o rearranjo social que o lulismo (a partir do desencadeamento de processos de mobilidade social e a potencialização desse processo com outras iniciativas — como as cotas e o Pro-Uni — democratizantes) produziu é não apenas contexto da multidão brasileira, é uma de suas mais importantes determinações, além de, claramente, ter duas ou três coisas a dizer sobre a composição social do movimento: em primeiro lugar, por ter se agenciado a movimentos de ascensão da renda e permitido que mais e mais famílias e pessoas ingressassem na arena da política brasileira com voz (e não só com o voto), e, em segundo lugar, por ter redesenhado as hierarquias sociais brasileiras (no contraponto das determinações antagônicas do capitalismo global), bem como seus horizontes de desejo: os filhos da classe média, assim como os filhos das classes subalternas ascendentes, são, ao mesmo tempo e diferentemente, precários: enquanto os primeiros não conseguem vislumbrar um horizonte onde terão rendimentos e um padrão de vida semelhante ao de seus pais (tanto em absoluto, mas também e, principalmente, relativamente à massa de pobres e excluídos), os últimos, após ascenderam em termos de renda salarial, começam a vislumbrar um porvir diferente do contexto em que cresceram, mas que depende da sua batalha cotidiana ao trabalhar e estudar. Em ambos os casos, é a subsunção real do trabalho no capital, a mercantilização do que antes eram direitos, em suma, o atual contexto biopolítico — processos inscritos na atual ordem do capitalismo neoliberal e que, no Brasil, se modulam especificamente pela ascensão, não ‘programada’, dos pobres — que, de certa forma, (associados aos gritos decorrentes da crise da representação, no qual nos deteremos na segunda nota) os impulsiona às ruas.

Nos dois casos apresenta-se um futuro diferente, mas uma mesma situação de precarização (um fenômeno diacrônico, por certo): enquanto os jovens criados no seio da velha classe média temem pelo próprio futuro, a partir das expectativas que nutriram ao longo da vida, os jovens das classes subalternas se rebelam ante o fechamento das brechas e aberturas por meio das quais o lulismo fazia passar iniciativas democratizantes da sociedade brasileira — bem como pela situação de precariedade geral inscrita nas suas próprias vidas desde sempre (eles querem mais) — e que, desde a ascensão de Dilma, combinada ao recrudescimento da crise mundial, cessaram.

Quando se quer ‘mais dinheiro para saúde e educação’ não se está propugnando uma intervenção governamental pela melhora dos serviços públicos que interferem, diretamente, na dinâmica reiterada de exclusão social no Brasil? Quando a multidão pede a desmilitarização da polícia, a partir, sobretudo, da própria experiência de confronto contra as forças repressivas, mas não só — vide os agenciamentos com a Maré, a Rocinha e o Vidigal –, não se está problematizando a máquina assassina de repressão e controle das classes subalternas, de negros e pobres? Quando se questiona as passagens dos transportes públicos, demandando a abertura de suas contas e atacando diretamente o seu empresariado, inclusive nas suas articulações privatistas dentro do Estado, não se está lutando por mobilidade urbana mais barata, por mais direito à cidade para quem é dela excluído pelo desenho elitista do traçado urbano brasileiro (que concentra equipamentos culturais e os próprios serviços públicos de forma escalonada em consonância com as hierarquias sociais)? Multidão de ‘classe média’!?!?

II. (Anti-)genealogia dos protestos: conexamente, a leitura das manifestações tem se deixado dominar, por vezes, por uma leitura genealógica dos movimentos de massa no Brasil. Espelha-se, assim, as atuais manifestações em outros processos semelhantes, ao longo da história do país, na busca por uma receita de ação frente ao que acontece no Brasil contemporâneo. Pior ainda, o passado passa a oprimir, inexoravelmente, a ação dos vivos, determinando (tal qual a composição social de classe média que acabamos de rejeitar) todo o horizonte das atuais mobilizações.

O provérbio árabe, segundo o qual os homens parecem mais com seu tempo do que com seus pais, nos parece mais sensato e aponta para um caráter extremamente problemático desse tipo de análise: sua contenção ao universo do Estado-nação. Justamente quando as convulsões sociais se estendem e articulam globalmente (com movimentos de multidões em diversas partes do mundo repetidamente se mobilizando: Ocuppy Wall Street, Indignados, Primavera Árabe, resistência anti-Troika na Grécia, entre outros), deixar a análise restrita a esse universo é perder completamente a capacidade de enxergar os cruzamentos da conjuntura planetária, deixando-se levar pelas travas daquilo que Deleuze e Guattari denominaram como ‘pensamento arborescente’ e seu ‘modelo representativo’ (justamente aquilo que é filosoficamente rejeitado pela multidão).

A esse tipo de pensamento, tal e qual os dois pensadores franceses, devemos opor um pensamento rizomático, capaz de enxergar as linhas que ligam a multiplicidade dos vários momentos e processos de rebelião política e social atuais. Nesse ponto específico é necessário que a leitura do movimento dos movimentos brasileiro no pano de fundo do contexto global atual seja acompanhada de uma leitura do lulismo no mesmo pano de fundo, o que a análise ancorada na ideia de Estado-nação é completamente incapaz de fazer.

É preciso notar que o lulismo sob Dilma enveredou pelo fechamento das brechas democratizantes, tanto pela dinâmica interna da coalizão, quanto pela consistência da crise econômica e financeira mundial — que tornou o preço das negociações inter-institucionais bastante mais elevado, o consenso governista sendo o de que importaria mais a manutenção da situação macroeconômica do país, com a manutenção dos níveis de emprego, dos programas sociais e da valorização da renda salarial. O pemedebismo que se insinuou desde então não é apenas um fenômeno nacional, mas, de fato, uma variante dos processos de fechamento dos canais de expressão política da vasta maioria das democracias parlamentares pelo mundo nos tempos do neoliberalismo maduro, modulação política e institucional da crise da representação que caracteriza o nosso tempo.

Desse modo, se apercebendo das várias temporalidades complexas e interconectadas que instauram o instante (kairòs) em que se pode pensar e agir no nosso tempo histórico, é que se pode ter uma compreensão menos moralista e determinista de fenômenos tão complexos quanto os recentes levantes de junho (e que no Rio de Janeiro, por exemplo, ganharam consistência temporal). Esperar que o mundo vivo e potente se adapte às teorias, descrições e desejos individuais, por outro lado, é a receita mais acertada para que sejamos engolfados no turbilhão, pregando sermões contra terremotos.

A crise da media(ção) em tempos (i)mediatos

A mídia não nos representa.

A mídia não nos representa.

“Do gueto nasce o caos que desestabiliza os mass media, pegos na emboscada da guerra interior, da violação dos direitos humanos, do espetáculo fascinante e incessantemente renovado da imolação e da agonia.” — Paul Virilio, A arte do motor, São Paulo, Estação Liberdade, 1996 [1993], p. 18.

Após as ‘jornadas de junho’, um dos motores do movimento dos movimentos que parece ter se consolidado no debate político é o da crise da representação. Por toda parte, os analistas, sejam os do oligopólio midiático ou os das burocracias partidárias, da direita à esquerda, sem distinção da posição em que se encontram no arranjo institucional (situação ou oposição), parecem convergir no diagnóstico de que os descolamentos entre os eleitores e seus representantes, os cidadãos e as instituições, foram algumas das principais determinações do evento.

A esse diagnóstico respondem as lideranças partidárias e os militantes com anúncios da promoção de uma reforma do sistema político — a mídia, para quem a corrupção e a distorção da representação são, a bem da verdade, o combustível das suas próprias intervenções políticas, apenas acompanha –, e, a depender da orientação em questão, com a problematização oposta dos problemas encontrados: financiamento público exclusivo de campanha, voto distrital, lista fechada, aberta ou mista, etc..

Sem que algumas dessas demandas não sejam, de fato, importantes na democratização do sistema político-eleitoral, o que não se pode perder de vista é outro ponto, verdadeiramente fundamental: que o problema da representação não se resume ao campo institucional da política, mas atravessa todos os segmentos da sociedade, incluindo-se, certamente, a mídia, cuja própria etimologia se assenta na ideia da representação (mediação). Não à toa, aliás, a imprensa e os partidos políticos nascem, em termos verdadeiramente significativos, juntos, como gêmeos siameses durante a emergência da sociedade burguesa oitocentista, na aurora da modernidade. São representantes genuínos do surgimento de um novo tipo e uma nova lógica de representação que pretende gerir a crise do poder e da soberania, dando-lhes uma solução em consonância com o ditado: vão-se os anéis, mas ficam os dedos, após o proletariado emergir dos escombros das revoluções burguesas, ameaçando a própria ordem novíssima, recém instaurada.

Por essa razão a atitude da multidão nas ruas de, a um só tempo, rejeitar os grandes meios de comunicação como símbolos tão conectados à corrupção que eles rejeitam quanto os partidos e fazer sua própria mídia, filmando e denunciando através dos celulares, quando nas ruas, e se mobilizando através das redes sociais, é paradigmática da miséria política das propostas reformadoras do sistema representativo.

Com essas ações, os manifestantes demonstram desejo e capacidade de serem sua(s) própria(s) mídia(s), abolindo, revolucionariamente, dessa forma a própria noção da mediação. Como alertou o filósofo político italiano Paolo Virno ‘uma oposição a esse percurso, que se conduz em nome dos valores da representação’ é ‘ineficaz e patética’, ‘tão eficaz quanto pregar a castidade aos pássaros’¹.

Da mesma forma, as máscaras, a identidade anonymous e, particularmente, a declaração de um dos militantes do Movimento Passe-Livre, que, perguntado sobre sua identidade, respondeu que seria ‘ninguém’ (declaração que já recebeu tratamento mais detido num artigo fantástico de Peter Pál Pelbart) — a mídia, ávida por encontrar um representante e levar o jogo para o próprio terreno, fracassando miseravelmente ante a sagacidade política do militante — são sintomas do desgaste da delegação mediada como forma de resolução dos conflitos sociais e políticos.

Revendo o diagnóstico, certamente míope, tanto dos grupos de mídia quanto dos partidos políticos, seria possível dizer mesmo que não vivemos uma crise de representação, mas que apenas se descortinou — diante de inovações que redefinem radicalmente o tempo (produtivo, histórico e antropológico), fazendo-nos aquilatar sua extensão e vislumbrar um horizonte também radicalmente novo, onde se vive no plano do imediato* — pela primeira vez o fato de que a representação é ela a mesma a expressão de uma crise, a crise que se instaura entre a potência dinâmica da multidão e o seu engessamento nas tramas e mitologias ( a mistificação do povo como fundamento de um poder unitário, que nunca pode lhe ser restituído, que radica sua legitimidade em um contrato originário, a ser defendido contra o próprio povo…) dos poderes constituídos.

* Agradeço este insight ao filósofo (e amigo) Cléber Lambert.

Nota:

1. VIRNO, Paolo, ‘Virtuosismo e revolução’ In: Virtuosismo e revolução, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008 [1994], p. 139.

No inverno do descontentamento: política de terror e terror da política

O inverno chegou.

O inverno chegou.

“A experiência, no entanto, parece pelo contrário ensinar que é do interesse da paz e da concórdia conferir todo poder a um só. (…) Mas, se a servidão, a barbárie e o isolamento se devem apelidar de paz, então não há nada mais miserável para os homens do que a paz. (…) É, portanto, do interesse da servidão, não da paz transferir todo o poder para um só: porque a paz, como já dissemos, não consiste na ausência de guerra, mas na união ou concórdia dos ânimos.”

Baruch de Espinosa, Tratado político, VI, 4, pp. 48-49.

Desde o início das manifestações por todo o país o tema da violência policial tem atravessado todas as agendas. Pode-se, inclusive, identificar a truculência da PM paulista como um dos mais poderosos agentes catalisadores da multidão brasileira. Os relatos da repressão contra os protestos de meados de junho na capital paulista encontraram forte eco na redes sociais, propiciando uma explosão comum em diversas outras capitais e cidades do país. A partir daí, entretanto, uma espécie de concertação ente forças político-partidárias equilibradas naquele estado (PT e PSDB, cuja concertação pode ser identificada mesmo no ridículo anúncio conjunto da revogação do reajuste das passagens) parece ter feito a opção por uma espécie de trégua momentânea, visando o arrefecimento dos protestos. Foi então a vez do governo do Rio de Janeiro, estado em que o PMDB simplesmente não tem opositores à altura, demonstrar que estava disposto a assumir um lugar de destaque na defesa da ordem. O que a favela já conhecia em tons vermelhos, foi apresentado às multidões, em tom cinzento e com odor irrespirável.

Desde as primeiras manifestações, a PM fluminense demonstrou-se autorizada a promover uma verdadeira política de terror contra manifestantes e não-manifestantes. Pessoas que passam tranquilamente pelas ruas, que apenas aproveitam o fim de tarde e início da noite em bares e restaurantes ou mesmo que estejam em clínicas e hospitais são alvos em potencial: basta estar no caminho das forças policiais. Ressalvado o dia 17 de junho (17J) quando a multidão enfurecida encurralou e derrotou a PM destacada para defender a ALERJ, no que ficou conhecido como batalha da ALERJ, o roteiro dos protestos tem sido o mesmo: após caminhadas pacíficas ocorre o ataque arbitrário das forças da ordem e o que se segue, da parte dos manifestantes, é tão apenas a expressão de um direito de resistência. Foi assim no 20J, na final da Copa das Confederações e ontem quando em ato convocado por centrais sindicais — mas não domesticado por essas, felizmente — a multidão se dividiu entre o centro da cidade e o Palácio de governo, em Laranjeiras. Neste meio tempo, a chacina promovida pelo BOPE, tropa de elite da PM fluminense, na favela da Maré — um evento, infelizmente, cotidiano, mas dessa vez ocorrido na confluência do movimento dos movimentos — veio amalgamar a percepção da insustentável situação da polícia militar no Rio de Janeiro (e também no Brasil). O secretário de segurança pública, José Mariano Beltrame, durante anos ressalvado até mesmo pela própria esquerda, pelos desvarios de Cabral, ficou, finalmente nu, e com ele toda a política pacificadora do estado.

Entre todos esses episódios, porém, houve o agravamento da situação política do governador Sérgio Cabral. À massa de desmandos, arbitrariedades e absurdos veio somar-se um fato quase inócuo — o uso e abuso de helicópteros oficiais por parte do governador — mas que desencadeou o encaminhamento de pedido de impeachment por parte de deputados oposicionistas. Em plena crise de legitimidade — inimaginável no interior de um governo que há 3 anos se reelegeu com apoio de 2/3 da população do estado –, o governo promove verdadeira política de terror contra a multidão que vem minando suas bases.

O que fica claro, na atual conjuntura, é que o que se vive, no âmbito das instituições políticas, no Rio de Janeiro, seja no estado, seja na capital, atualmente, não tem qualquer relação com a política, mas é expressão de como a política institucional do nosso tempo rompeu quaisquer ligações com a política real que emana da multidão constituinte. O que os governos do PMDB promovem, com suas polícias, no sentido que essas palavras recebem da polizeiwissenchaft, é a aniquilação da política como forma de gestão. Qualquer manifestação de resistência ou de revolta em potência é obstruída pela polícia, expressão máxima dessa forma de governo. E, até meados de junho, a estratégia vinha funcionando quase que à perfeição. Foi quando surgiu o inesperado — aquilo que nós sempre esperamos.

O que a multidão desencadeou no Brasil, e mais especificamente no Rio de Janeiro, foi um radical processo de crítica da razão política sob a qual vivemos atualmente. E aqueles — dentro os quais Cabral se destaca — que tem terror da política não tem nada de novo que lhe opor, senão a continuidade da repressão. O que não podem impedir mais, aparentemente, é que suas reações ao processo ecoem como chamado aos que ainda não estão lhe resistindo. Os crimes do poder vem engendrando o aumento da própria resistência. O aumento do terror de estado resultou apenas em confirmar o terror que ele mesmo sente da política das ruas. À paz (armada policial) a multidão hoje opõe uma verdadeira guerra. Pois percebeu, como Espinosa no século XVII, que a primeira não é a ausência da última e que a democracia tem a ver mais sobre o dissenso do que sobre o consenso.

A multidão brasileira e os limites do lulismo

A multidão na posse de Luiz Inácio Lula da Silva em 2003.

A multidão na posse de Luiz Inácio Lula da Silva em 2003.

As jornadas de junho: uma hipótese

As últimas duas semanas sacudiram o Brasil: ruas, praças e avenidas — o espaço público, por excelência — foram tomadas por multidões que, em ondas crescentes, se pluralizaram de tal forma a não mais possuir uma pauta definida ou mesmo identificável. Se durante a primeira semana, o Movimento Passe Livre conseguiu manter uma pauta clara e objetiva (a revogação dos aumentos das passagens dos serviços de transporte público em São Paulo em primeiro plano; e, como pano de fundo, a proposição do passe livre como deslocamento da agenda política relativa ao tema à esquerda), na segunda semana, a descabida e absurda repressão policial que a PM paulista, sobretudo, realizou, levou multidões cada vez maiores a tomar centros urbanos por todo o Brasil.

À emergência dessas massas, houve dois momentos de reação das esquerdas (tanto as partidárias, quanto as não-partidárias): primeiramente, como alguém que vê um sonho se realizar, o deslumbramento e o entusiasmo ativo em relação às centenas de milhares de pessoas que invadiam as ruas — finalmente chegara o ‘grande dia’, quando a esquerda poderia surfar na onda progressista da multidão e impor sua própria agenda política ao país, à revelia da correlação sócio-institucional de forças. Num segundo momento, entretanto, o rosto daquela multidão se desfigurou, as cores de suas bandeiras, antes vermelhas, ganharam tonalidades verdes e amarelas e grassou a rejeição pelos partidos — mormente os de esquerda, únicos à vista e ao alcance dos manifestantes –, as pautas antes claras e inequivocamente ‘de esquerda’ metamorfoseando-se em um mosaico de desejos e vontades (nem sempre ao gosto daqueles que sempre estiveram na rua, mesmo quando o ‘gigante’ sequer sabia que dormia).

O sentimento era (e ainda é) de perplexidade diante de uma emergência simplesmente miraculosa, sem qualquer previsão por perto de nenhum dos atores até então engajados na luta política. Diante de tal hesitação, este blog arriscará uma hipótese sobre as duas últimas semanas no Brasil, semanas que aceleraram nosso tempo histórico, entre o pânico e a esperança: a multidão que saiu às ruas não está insatisfeita com a situação do país dos últimos 10 anos (como é o diagnóstico-desejo da oposição partidária e midiática). Está insatisfeita com o país tout court, ou seja, em todos os seus quase dois séculos de existência. O que os manifestantes que vão às ruas desejam é, a um só tempo, mais e menos lulismo.

O que é o lulismo?

Por lulismo se convencionou designar, nos últimos anos, o conjunto dos fenômenos que conjugados caracterizam a economia política promovida pelo Partido dos Trabalhadores ao longo da década em que esteve à frente do governo federal. Segundo seu maior teórico, André Singer, o lulismo seria uma pactuação conservadora — destinada a minar a resistência do eleitorado mais pobre, menos inclinada a apoiar programas de transformação social de cariz mais radical e acelerado — cujo objetivo seria promover um reformismo fraco, gradual, na sociedade brasileira.

Tal economia política caracterizou-se pela manutenção do enquadramento neoliberal da política econômica levada a cabo por FHC (juros altos, superávits primários sucessivos e câmbio flutuante) e, ao mesmo tempo, pela promoção de inflexões à esquerda: política de valorização real do salário mínimo, instituição de programas de transferência de renda (cujo caso mais bem sucedido é o Bolsa Família), uma política cultural gerida a partir de perspectivas inovadoras, a democratização via cotas raciais e sociais, bem como por programas de bolsas de estudos, do acesso ao ensino superior, oferta de crédito para setores mais pobres da população através de mecanismos como o crédito consignado, entre outras.

Os resultados eleitorais, sociais e econômicos são bem conhecidos. Em 2010, Lula foi capaz de eleger uma sucessora desconhecida do eleitorado brasileiro — sua então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. E os indicadores do país em termos de criação de empregos formais (19,5 milhões somados os governos Lula e Dilma), redução da pobreza extrema e mesmo da desigualdade de renda fizeram a década do PT no poder ser denominada pelo IPEA como a década inclusiva, a desigualdade, segundo o índice de Gini, recuando para o mais baixo patamar histórico desde as primeiras estatísticas disponíveis (da década de 1960).

Dilma e os limites da governabilidade lulista

Os resultados apresentados acima, entretanto, não vieram a um preço politicamente baixo: a pactuação conservadora exigiu — além do próprio rebaixamento do programa histórico do PT, bem menos moderado — inúmeras concessões e o termo ‘governabilidade’ virou lugar comum no discurso de petistas dos mais diversos matizes. Era necessário que demandas e bandeiras históricas da esquerda brasileira fossem engavetadas temporariamente ou mesmo negligenciadas abertamente para que o pacto de classes não fosse ameaçado.

Enquanto o governo Lula conseguiu arbitrar soluções criativas para os impasses da coalizão bastante heterogênea de governo (em cujas fileiras se podem encontrar da FIESP ao MST e de organizações feministas e LGBTTs a líderes evangélicos conservadores) — a despeito de realizar avanços sempre dentro de limites bastante estritos –, em parte graças ao período de bonança econômica, em parte por uma gestão política mais eficiente, o governo Dilma (cuja base parlamentar é ainda maior) se mostrou incapaz de inventar novas possibilidades para a luta política nos limites da institucionalidade — sua ‘coalizão baleia’, nas palavras de Wanderley Guilherme dos Santos, só foi capaz de ‘parir sardinhas’. Limitando-se a gerir um limiar mínimo de diferenciação ante a oposição neoliberal, no governo Dilma se assistiu a retrocessos como a cessão da presidência da CDHM da Câmara dos Deputados a um pastor evangélico racista e homofóbico, a ampliação das alianças à direita (como a nomeação de Afif Domingos para a Secretaria da Micro e Pequena Empresa — cargo que ele divide com o de vice-governador de São Paulo em chapa com… Geraldo Alckmin, do PSDB!) — e o convite para nomear para a Secretaria de Educação Básica do MEC uma ex-ministra de FHC, notória neoliberal, entre outras coisas (para um texto mais detalhado sobre o desastre da governabilidade durante o mandato de Dilma conferir outro texto do blog). Tudo isso sem que se assistisse a inflexões à esquerda — salvo por medidas burocráticas importantes, sem maior apelo (mesmo a redução dos juros a patamares históricos se revelou insustentável nos últimos meses)– , que permitissem equilibrar e apaziguar o interior da coalizão.

Num arco mais longo, o fisiologismo da política brasileira, muito bem instalado no chamado ‘presidencialismo de coalizão’, permaneceu intacto, o quê somado aos frequentes casos de corrupção — devidamente amplificados pela mídia oligopólica — desgastou ainda mais o sistema representativo. Os acordos de gabinetes pareciam não mais se importar com a opinião pública (a eleição para a presidência do Senado, mesmo com a pressão contra Renan Calheiros, seguiu o seu curso placidamente). Até que a multidão se levantou, demandando mais.

A composição social e os desejos da multidão

A multidão brasileira que emergiu nas ruas nas duas últimas semanas em ondas tão diversas quanto arrebatadoras pode ser ilustrada como uma boneca russa, em cujo interior encontramos novas bonecas menores. À primeira onda da multidão, cuja pauta era mais definida e, supostamente, mais progressista, seguiu-se uma onda que se incorporou àquela, com pauta mais difusa e plural e, para alguns setores da esquerda (até o presente momento) assustadoramente udenista e nacionalista, sendo capitaneada nas redes e nas ruas por militantes e organizações de direita e até fascistas. Mas quem, de fato, integra essa multidão?

Alguns sinais nos ajudam a localizá-la social e produtivamente. Tomados os estopins das revoltas em diversas partes — o reajuste dos preços das passagens de transportes urbanos — e as formas e mecanismos de mobilização — a internet — fica sinalizada a participação, sobretudo, da juventude urbana. Da mesma forma, os gritos por melhores serviços públicos de saúde e educação denotam uma juventude receosa ‘de não poder manter o padrão de vida da família e (…) de não ver realizada sua esperada ascensão social’, segundo Marcelo Ridenti, para quem se trataria de ‘uma massa de jovens escolarizados, com expectativas elevadas e incertezas quanto ao futuro, sem encontrar pleno reconhecimento no mercado de trabalho nem tampouco na política.’ Da mesma forma, a juventude também foi caracterizada, por Giuseppe Cocco, como integrante da ‘nova composição do trabalho metropolitano’, substituto de fato e de direito do engodo da ‘nova classe média’. Trabalhando ‘diretamente nas redes de circulação e serviços da metrópole’, esses jovens sentem na pele a vida precarizada (alguns integram mesmo a geração ‘nem-nem’) das grandes cidades brasileiras. Algumas pistas para compreender o que a multidão desejaria ver concretizado num futuro próximo…

Em algumas notas sobre o assunto, nossa suposição era de que se tratava de uma multidão auto-organizada a partir das redes sociais, majoritariamente a-partidária e, mesmo, anti-partidária, cujo desencanto com a forma partido, acabou por responsabilizá-la pelo emperramento das instituições representativas brasileiras. Mais ainda, intuímos que o levante brasileiro expressaria a crise da representação política que grassa por todo o mundo e que já havia se apresentado em outras mobilizações, como na Espanha do 15-M e na recente revolta turca. Recapitulando o crescente emperramento das instituições políticas sob os limites da governabilidade lulista, não fica difícil entender o total descolamento existente entre os cidadãos e os partidos. Mas, além disso, é preciso notar que as formas e mecanismos de exercício dos direitos políticos remontam ao século retrasado. E convivendo com formas de comunicação em tempo real… o descompasso não poderia ser mais notável.

Acuada em um sistema representativo pouquíssimo oxigenado, a juventude brasileira — supostamente despolitizada até então — foi à ruas pelo direito à política e, mais ainda, pelo direito à outra política, menos amarrada nos conchavos interpartidários e elitistas, mais participativa. Da mesma forma, em situação precária diante da vaga neoliberal que exacerba o individualismo e lhes nega um futuro esperançoso, os jovens, bem como outros grupos (incluindo-se aí, por exemplo, os movimentos sociais por moradia), se articularam nas redes e foram às ruas pelo direito ao futuro fora do esquadro da mercantilização da vida.

‘Mais e menos lulismo’: à guisa de conclusão

A juventude precarizada que, majoritariamente, foi às ruas deseja mais e menos lulismo. Mais lulismo, pois ela é resultante do pujante processo de mobilidade social desencadeado no Brasil dos últimos dez anos, a primeira geração de milhões de famílias que chegam pela primeira vez ao ensino superior, a primeira geração incluída na chave do consumo de massas — porta de entrada para a cidadania efetiva –, ou seja, essa juventude conhece, em parte, os benefícios produzidos pelo governo de centro-esquerda que mantém a hegemonia eleitoral no país.

E também menos lulismo, porque, conhecendo a despolitização da última década — com pouquíssimos enfrentamentos políticos abertos — e o descolamento dos partidos em relação às massas, não enxerga horizonte de avanços com o passo cada vez mais lento do reformismo fraco, tônica do PT, principalmente, nos últimos três anos.

A surpreendente irrupção da multidão de jovens precarizados nas ruas, aliás, não poderia vir em melhor hora para o próprio Partido dos Trabalhadores que, cada vez mais enredado nos jogos de aliança e repartição do Estado brasileiro, já havia esgotado praticamente toda sua potência política transformadora, enquanto acumula retrocessos em diversas matérias consideradas bandeiras não-negligenciáveis da esquerda, como os direitos indígenas, LGBTTs, das mulheres, etc.. A transformação proporcionada pelo pacto lulista foi significativa, mas os meios empregados corroeram paulatinamente a capacidade de inovação, de produção do inesperado em política. O inesperado veio então ao encontro do Partido dos Trabalhadores, pedindo passagem.

Os filhos do lulismo sabem melhor que os pais (do lulismo) que só mais direitos, como a garantia do acesso a direitos constitucionais como saúde e educação e produção de direitos associados à mobilidade urbana, parte integrante do direito à cidade e associada às políticas culturais — disseminadas por Gil e Juca nos dois governos Lula –, bem como o incremento de formas participativas de política e a eliminação de graves distorções do sistema político e eleitoral brasileiro pode fazer o lulismo superar a si mesmo, oxigenando a política do partido e da esquerda do país.

À beira do colapso, o lulismo se vê na iminência de ter de se articular à potência política das ruas, onde os jovens gritam por mais e melhores direitos, como forma de constituição de uma nova agenda progressista para a próxima década: a década dos direitos. Que os pactos de governabilidade cedam o lugar, desloquem-se ao fundo da cena, e deixem o protagonismo para os pactos por saúde, educação, transporte, uma outra política, em suma, direitos… ao futuro. Para o lulismo e, para eles, seus filhos.

Os gênios da realpolitik, medíocres da política real

Gravata azul, gravata vermelha... faz diferença?

Gravata azul, gravata vermelha… faz diferença?

Entre a realpolitik dos gabinetes e a política real da multidão nas ruas, o Partido dos Trabalhadores parece definitivamente condenado a, doravante, se restringir aos pactos de governabilidade, condenando seu ‘reformismo fraco’ (na análise de André Singer) à total imobilidade e consequente perda de qualquer potência política transformada, constituinte — bem como às resultantes eleitorais que um tal quadro pode render ao partido.

O anúncio e chamamentos feitos pelo partido para ‘ato de apoio a Dilma’ fazem duvidar, tamanha a mediocridade da capacidade analítica que parecem respaldá-los, se o partido não enxerga além de todos que, nos últimos dias, vem acompanhando — com medo ou entusiasmo — a multidão irromper, em ondas cada vez maiores, nas ruas. Apenas informações novas, inacessíveis à maioria, podem justificar um passo esdrúxulo como esse. E esta não é a primeira prova da mediocridade de análise de situação que o PT deu durante a marcha dos últimos acontecimentos.

Ao tergiversar por dias em relação aos protestos, o prefeito Fernando Haddad e o PT, conseguiram perder uma excelente oportunidade de tornar visível a distinção entre a direita neoliberal e a esquerda governista. A assimilação do PT ao Estado, em processo de verdadeira simbiose, parece ter engessado completamente o partido, amarrando-o nas teias da institucionalidade. O cúmulo da insensatez política se deu ontem (19.06.2013) quando Haddad, após repetir algumas vezes a impossibilidade de se revogar o aumento da tarifa, apareceu, no Palácio dos Bandeirantes (casa do governo tucano paulista) para anunciar conjuntamente a Alckmin a… redução das tarifas. À perspectiva de se diferenciar do PSDB, demonstrando afinação com as ruas, o PT preferiu conduzir uma concertação nacional entre as esferas institucionais de poder, concedendo a revogação dos reajustes das passagens nas capitais mais importantes, como forma de tentar estabilizar a situação.

Como salientamos em texto anterior, apressam-se os que entregam a multidão das ruas ao udenismo e ao golpismo, sem ao menos promover o cabo-de-guerra ideológico na multidão (nunca sobre ou a respeito dela). O movimento dos movimentos é heterogêneo e comporta pautas neutras, politizáveis desde qualquer ângulo do espectro político. Ou a corrupção se tornou um tema da direita a priori? O ódio à máfia midiática não é politizável desde a esquerda? Por que não promover a reforma política, com financiamento público de campanha, ampliação da participação democrática, transparência do poder institucional, entre outras coisas? Por que não enfocar o caráter monopólico e autoritário da mídia brasileira, propondo uma lei de democratização da mídia? São questões de ângulo, não de substância.

Se em outro texto anterior assinalamos a ‘urgência que se apresenta ao PT se este ainda pretende ser um canal de representação do campo da esquerda no Brasil: recuperar sua capacidade de se articular – e não os dirigir, conciliando pelo alto vetando e circunscrevendo discursos e práticas – aos movimentos sociais, cooperando com estes ao fornecer as instâncias representativas do Estado como trincheiras para defender direitos já existentes e para avançar na criação de outros mais’, os recentes episódios são claros ao demonstrar que o diagnóstico petista (ou pelo menos de suas cúpulas) caminha em sentido por tudo oposto, apostando na apatia política.

Com a convocação de ato em defesa de Dilma, o PT extrapola mesmo esse cenário e essa opção, cometendo um erro que pode custar caro ao partido. Até o momento não havia consistência real no golpismo e no udenismo das manifestações por todo o país. O PT parece querer dar aos movimentos uma pauta comum, construir-lhe um inimigo unívoco, jogando a multidão no colo da direita partidária e midiática. Que fique o ensinamento e que o PT encerre ou minore a confiança aparentemente inabalável no marketing político como forma de comunicação. Pode ter dado certo nas últimas eleições, mas certamente já se provou equivocado em tempos de multidão. Os gênios da realpolitik provaram ser os medíocres da política real.

Algumas notas sobre a multidão brasileira

A multidão, com mais de 100 mil pessoas, marchou no Rio de Janeiro.

A multidão, com mais de 100 mil pessoas, marchou no Rio de Janeiro.

O dia 17 de junho de 2013 ficará marcado por diversas manifestações e protestos por diversas capitais do Brasil. Segundo estimativas, mais de um milhão de pessoas foram às ruas em doze capitais do país. Se este dia se notabilizará como marco histórico de uma onda maior de protestos que despejará multidões mais consistentemente nas ruas e se estas últimas conseguirão racionalizar objetivos mais claros é impossível prever.

Abaixo enumero algumas notas e impressões sobre o processo recente de construção coletiva da multidão brasileira:

I. ‘Sem partido!’ — No Rio de Janeiro – e, a julgar pelas informações encontradas nas mídias sociais e corporativas, também em outras cidades, como São Paulo – há um forte sentimento anti-partido nas manifestações. Apressadamente já se conectou essa tendência a uma captura dos processos pelo udenismo característico da política brasileira. Em relação a esse ponto é necessário fazer algumas distinções importantes, quais sejam: em primeiro lugar, o udenismo não é tão somente uma forma de manobra ideológica da direita brasileira, mas uma denominação que pode recobrir, com certa adequação, a percepção difusa da dinâmica política que se deixa ouvir na murmuração cotidiana, nas conversas entre familiares, entre amigos, nos bares, por exemplo. Em segundo lugar, é preciso alargar o horizonte da análise e notar que a maioria dos protestos integrantes do recente ciclo mundial de lutas em países de democracia parlamentar (o OWS, o 15-M, as recentes mobilizações na Turquia, entre outros) incluem uma forte tendência de crítica da política representativa, manifestando-se numa verdadeira crise geral da representação política como forma de relação entre as partes envolvidas na dinâmica institucional da democracia. Cabe lembrar que essa crítica não implica necessariamente apoliticismo, mas uma exigência pela recomposição de um ambiente institucional menos deformado e distorcido ou o vislumbre de um horizonte novo na dinâmica política (os partidos não existem desde o livro do Gênesis, é bom que se lembre).

II. O aprendizado da multidão — O segundo ponto a destacar é que a multidão é extremamente heterogênea, incluindo partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais – enquanto sujeitos coletivos institucionalizados -, mas também, e sobretudo, se forjando nas redes (sociais) e nas ruas, através das novas capacidades de mobilização oferecidas pela internet. Trata-se de uma mobilização de novo tipo, capaz de, sem partir de nenhum centro localizável, fazer emergir uma multidão auto-organizada e plural nas ruas. Assim, se há ressalvas a fazer quanto a rejeição de movimentos institucionalizados (sobremaneira os partidos políticos), é bom que se lembre que aqueles que encarnam os fluxos subterrâneos de revolta, latentes desde certo tempo, e que agora convergem nas grandes passeatas e mobilizações, carecem da experiência prática da política nas ruas e, portanto, aprenderão no curso dos movimentos e marchas (com o apoio daqueles mais cotidianamente engajados com questões de mobilização, militância e ativismo) a canalizar as expressões da revolta que os levaram a sair de casa. O trabalho da esquerda sobre a multidão é um trabalho na multidão (seja nas redes, seja nas ruas).

III. Da utilidade e da desvantagem da história para a multidão — A emergência das multidões por todo o Brasil deixaram inseguros todos aqueles que conhecem a história recente do país. Muitos estão preocupados com a possibilidade dessas revoltas serem instrumentalizadas pela direita midiática – que, após um momento de reação padrão (incitação à repressão e criminalização dos protestos) foi surpreendida pela potência das mobilizações, passando a adotar um tom mais cauteloso e defensivo, passando a pretender dar direção intelectual aos protestos – e não cansam de relembrar a conjuntura que antecedeu o golpe de militar de 1964. No seu ‘O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte’, Marx escreveu que o passado oprimia como um pesadelo os cérebros dos vivos, bem como, comentando Hegel, que a história, seus personagens e fatos só se repetiriam duas vezes: a primeira como tragédia e a segunda como farsa. O que a primeira de suas observações tem a dizer sobre a atual situação é que todo passado que promove não a ponderação sobre os rumos, mas a inação e o medo, é opressor: intoxicada de memória a multidão não marcha. E a segunda, que os alertas (por vezes realmente temerosos, mas em outras ocasiões por pura canalhice política) tem de cessar ante a incapacidade da história em se repetir (e é esse o recado de Marx). O que acontece hoje é a emergência de uma tensão e de um limite, ambos prestes se romper. Nessa hora, a história precisa deixar de ser patrimônio, precisa ser expropriada pelos atores, em nome do futuro.

O PT, a realpolitik e a política real do acontecimento

Fernando Haddad discursa para movimentos por moradia (abril/2013).

Fernando Haddad discursa para movimentos por moradia (abril/2013).

As recentes manifestações ocorridas por várias capitais do Brasil — contra os aumentos nas passagens de transporte público (mas significando também a luta pela mobilidade urbana e pelo direito à cidade — provocam uma série de questionamentos, dentre os quais: estaríamos adentrando no Brasil o ciclo de lutas sociais que desde 2011 na Tunísia leva milhares de pessoas às ruas em protestos contra a perda de direitos, a crise econômico-financeira, as violações de direitos de toda espécie, a violência dos aparelhos estatais, as políticas de austeridade impostas pela banca mundial, penalizando sempre os despossuídos e os mais pobres? Iniciaria-se um novo ciclo de lutas sociais e políticas no Brasil no esgotamento do ciclo que desde há 30 anos animou as primeiras conquistas da redemocratização? Ou estaríamos vendo apenas um abalo coordenado, mas episódico, da ordem capitalista de novo tipo que se instaurou no Brasil desde o advento do lulismo em 2003? Certamente todas essas questões estão entrelaçadas e merecem exames individuados. Nosso enfoque, todavia, não recairá sobre nenhuma delas, mas sobre o impasse em que se coloca o Partido dos Trabalhadores, a cada dia mais enredado nas intrigas e jogos de poder da política tradicional, designada por seus militantes como a ‘realpolitik’, a única possível, fora da qual apenas caminharíamos rumo a um abismo.

De que se trata quando designamos a atual situação do PT por ‘impasse’? Da crescente incapacidade do partido em se movimentar no campo da política do real, a política dos acontecimentos que rompem os limites do possível, que introduzem o inesperado nos diversos enfrentamentos sociais e políticos que perpassam o Brasil contemporâneo. Após 10 anos encastelado no cume da estrutura gerencial do Estado brasileiro, o partido parece ter perdido, por completo, a capacidade de lidar com aquilo que é o avesso da lógica administrativa das instâncias estatais: a emergência dos setores organizados da sociedade como multidão nas ruas.

A irrupção desses setores assinala a crítica da política do estritamente possível (convém não esquecer que a política como ‘arte do possível’ é uma máxima conservadora) em favor de uma política que se oponha às técnicas de governo — que ao fim e ao cabo são, efetivamente, técnicas de dominação –, em favor de uma política em que os arranjos do possível, no campo da representação, visem o destravamento dos impossíveis, articulando-se aos movimentos que se insurgem para alargar o espectro das opções.

Tornemos concretas as abstrações: não seria importante para o país que se fizesse uma reforma política progressista, capaz de ajustar melhor o distorcido campo representativo da política brasileira? Ou, noutra seara, a regulação e democratização dos meios de comunicação não significaria uma ruptura com a hegemonia conservadora que codifica as narrativas políticas sempre sob um mesmo prisma (aquele consensual às empresas que, de forma oligopólica, dominam o setor no Brasil)?

O que se vê na reação das várias esferas de poder onde o PT tem assento é, na prática, quase indiscernível da reação de partidos e instituições de matriz objetivamente conservadora. No episódio recente das manifestações em São Paulo, promovidos pelo Movimento Passe Livre (MPL), Fernando Haddad — que, em poucos meses de governo, parecia tentar agitar o marasmo da política petista, intervindo, por exemplo, a favor de assentamento prestes a ser desocupado violentamente pela PM tucana e concedendo aumento de 79% a parte do funcionalismo da prefeitura — acumpliciou-se ao empresariado e ao governo de Geraldo Alckmin, repetindo em suas declarações o mesmo escamoteamento do tópico central do debate, ancorado na rejeição do ‘vandalismo’ (efeito colateral de protestos que é praxe da direita amplificar e enfocar) e em frágeis assertivas como a de que o aumento se deu abaixo da inflação acumulada — certamente Haddad sabe que essa não é a única variável para se avaliar a justeza de um aumento, nem o terreno sobre o qual todos, fora do espaço das decisões de técnica política, deve(ria)m assentar suas reflexões a respeito do problema. De um prefeito de esquerda se deve cobrar que pense na democratização do direito à cidade e aos usufrutos que esse direito representa para a população pobre da periferia, carente de equipamentos culturais em seus bairros de origem, por exemplo.

Uma urgência se apresenta ao PT se este ainda pretende ser um canal de representação do campo da esquerda no Brasil: recuperar sua capacidade de se articular — e não os dirigir, conciliando pelo alto vetando e circunscrevendo discursos e práticas — aos movimentos sociais, cooperando com estes ao fornecer as instâncias representativas do Estado como trincheiras para defender direitos já existentes e para avançar na criação de outros mais.

Ao longo do governo Lula, apesar dos limites da coalizão de governo (marcada fortemente pela distorcida representação da política brasileira) era possível notar um movimento pendular: avanços e recuos combinavam-se numa dialética virtuosa, capaz de promover uma orientação progressista ao Estado brasileiro. Os programas sociais de transferência de renda, a política de valorização do salário mínimo, os programas de melhoria e democratização do acesso ao ensino superior, a política cultural e mesmo as soluções arbitrais encontradas em diversos outros campos (as políticas para as mulheres e os LBGTT não se limitavam a recuos frente as pressões dos setores conservadores) denotavam esforços do partido que encabeçava a coalizão em promover micro-revoluções democratizantes. Com a eleição de Dilma, em parte pela situação econômica mais difícil, mas também por recuos nitidamente resultantes de escolhas conservadoras do Partido dos Trabalhadores e do governo federal, a capacidade de inovação política se perdeu por completo, restando apenas uma administração de um limiar de discernibilidade que se compromete a não encerrar os avanços promovidos pelo lulismo. O campo da política foi atravessado pela chantagem: o voto no PT é a única saída contra a volta dos anos de neoliberalismo.

Na última década, o governo encabeçado pelo PT foi capaz de algumas façanhas (redução da desigualdade de renda abaixo de patamares históricos, sério combate à pobreza, entre outras) e, entretanto, todas essas conquistas não impediram que o espectro ideológico brasileiro tenha entrado num movimento centrípeto irrefreável, no qual  importa mais ao PT a conquista dos setores de centro-direita (assim como ao PSDB a conquista dos setores de centro — o prova a recente tentativa de articular um programa de cotas à moda bandeirante), que a manutenção do programa e da agenda progressista que ajudou a levar o partido ao poder em 2002. Da indiferenciação do PT não resultará nada de bom para a esquerda brasileira: somente a possibilidade de que, dos interstícios da enorme coalizão lulista, se desprenda um ator capaz de fazer naufragar, por completo, o projeto de democratização de uma das (ainda) mais desiguais sociedades do planeta.

O PT precisa voltar à política real dos acontecimentos, a única capaz de animar um projeto que contemple também a prática dos acordos necessários na esfera da política tradicional, mas que não seja estruturada e pensada tão somente a partir desse enquadramento. Que esteja, enfim, aberta a sintonizar-se com as demandas do inesperado, do ingovernável; pois, a ‘governabilidade’, tópico tão caro ao discurso do petismo moderado, saiu dos salões e gabinetes e foi para as ruas.

A indigência da esquerda que constrói espantalhos

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Marina Silva orando. O que isso quer dizer? Nada.

A reportagem sobre a bancada evangélica (transcrita abaixo) apenas reforça a hipótese defendida por esse blog: enquanto se constrói o espantalho do conservadorismo evangélico intrínseco (como tentamos defender no nosso último texto – aglutinando-se tendências protestantes díspares como se elas fossem idênticas – a ser combatido, o conservadorismo laico-católico é o grande pilar dos retrocessos sociais e políticos do Brasil contemporâneo – e sem receber a ira crítica da esquerda (que cai, de forma indigente, na construção de um inimigo unitário a ser combatido). Toda vez que alguém se refere à ‘bancada evangélica’ como responsável por esses retrocessos fingindo ou sequer notando que ela não é majoritária ou que é idêntica a uma ‘bancada religiosa’ em sentido amplo corrobora a crítica de Marina Silva sobre o caráter enviesado das críticas a Feliciano (de resto, Marina faz isso como evidente jogo de cena em busca de somar apoio e base eleitoral para 2014 – o que não deixa de ser o comportamento político padrão dos envolvidos na corrida presidencial).

Parte da esquerda, inclusive, já assumiu o próprio envolvimento de evangélicos (de diferentes matizes) na política como mal em si, como denota ao anunciar, com evidente tom crítico, que a criação da Rede Sustentabilidade tem a participação de evangélicos na coleta de assinaturas (cerca de 1/5 das assinaturas seriam de evangélicos), o que seria indício inequívoco do ‘endireitamento’ da candidata. Falham, miseravelmente, entretanto ao sequer perceber que os evangélicos são, hoje, mais de 1/5 da população brasileira (cerca de 22%), não havendo, portanto, nenhuma sobre-representação de evangélicos na criação da Rede.

Atuação de evangélicos na Câmara é restrita e dispersa

Bancada tem representação menor que população que declara essa religião

Grupo só atua de forma coesa em poucas votações, entre elas as que tratam de restrição ao consumo de bebidas

FABIANO MAISONNAVE DE SÃO PAULO

A bancada evangélica da Câmara dos Deputados ampliou recentemente a visibilidade ao assumir o controle da Comissão de Direitos Humanos. Mas a aparente demonstração de força esconde um bloco de 66 deputados disperso entre 16 partidos e 24 igrejas, com articulação quase nula em votações.

Contrariando a percepção de que os evangélicos tenham uma representação exagerada, o percentual da bancada sobre o total da Câmara (15%), é menor do que a população que se declarou evangélica no mais recente Censo do IBGE, 22,2% –embora tenha quase que dobrado em relação à legislatura anterior, quando contava com 36 deputados.

Com raras exceções, a atuação da bancada evangélica está longe de ser suprapartidária. Há alguns dias, por exemplo, deputados do bloco estiveram no centro do embate entre governo e oposição por causa da Medida Provisória dos Portos.

O deputado Leonardo Quintão (PMDB-MG) apresentou uma emenda ao texto original tachada de “Tio Patinhas” pelo também evangélico Anthony Garotinho (PR-RJ). O detalhe é que ambos são da Igreja Presbiteriana.

Garotinho, aliás, já foi processado por Benedita da Silva (PT-RJ), também evangélica, por danos morais. E é rival declarado de Eduardo Cunha (PMDB), ligado à igreja Sara Nossa Terra.

A deputada petista, por sua vez, é historicamente ligada aos movimentos negros, ferozes críticos de Marco Feliciano (PSC-SP), processado por racismo ao dizer que os africanos sofrem de uma maldição bíblica.

Nem a bancada da Universal, a mais coesa entre os evangélicos, é totalmente unida: embora seis deputados sejam filiados ao Partido da República, um é do PRB.

DESTAQUE

O bloco evangélico também tem pouca influência individual. Somente quatro deles aparecem na lista dos cem parlamentares mais influentes do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), órgão de interlocução entre Congresso e entidades sindicais.

Por outro lado, muitos têm problemas com a Justiça: 32 são réus em processos no Supremo Tribunal Federal.

Falando sob a condição de anonimato, um deputado disse que vê três grandes grupos na chamada bancada: o núcleo duro, formado por pastores, como Feliciano; os que costumam aparecer quando convocados, caso de Garotinho; e os que praticamente não participam, incluindo Benedita.

AÇÃO FOCADA

“A Frente Parlamentar Evangélica defende a vida e a família”, diz o deputado e pastor Roberto de Lucena (PV-SP) sobre o escopo da atuação do bloco.

Ele é um dos quatro vice-presidentes da bancada liderada por Paulo Freire (PR-SP), pastor e filho de José Wellington, presidente da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil, principal entidade da maior denominação evangélica do país.

Lucena disse que só se lembra de duas votações em que a bancada se articulou.

O endurecimento da lei contra motoristas alcoolizados e o apoio a uma emenda que mantinha a proibição da venda de bebidas alcoólicas em estádios durante a Copa, ambas no ano passado.

No caso dessa emenda, 40 evangélicos apoiaram a proposta, incluindo três peemedebistas, contrariando a orientação partidária.

Lucena é o relator do controvertido projeto que permite que psicólogos promovam tratamento para “curar” a homossexualidade.

Nas comissões, a bancada evangélica é hegemônica só na de Direitos Humanos, presidida por Feliciano: são 7 dos 11 titulares, incluindo os três vice-presidentes.

Colaborou PAULO GAMA, de São Paulo”