A multidão brasileira e os limites do lulismo

A multidão na posse de Luiz Inácio Lula da Silva em 2003.

A multidão na posse de Luiz Inácio Lula da Silva em 2003.

As jornadas de junho: uma hipótese

As últimas duas semanas sacudiram o Brasil: ruas, praças e avenidas — o espaço público, por excelência — foram tomadas por multidões que, em ondas crescentes, se pluralizaram de tal forma a não mais possuir uma pauta definida ou mesmo identificável. Se durante a primeira semana, o Movimento Passe Livre conseguiu manter uma pauta clara e objetiva (a revogação dos aumentos das passagens dos serviços de transporte público em São Paulo em primeiro plano; e, como pano de fundo, a proposição do passe livre como deslocamento da agenda política relativa ao tema à esquerda), na segunda semana, a descabida e absurda repressão policial que a PM paulista, sobretudo, realizou, levou multidões cada vez maiores a tomar centros urbanos por todo o Brasil.

À emergência dessas massas, houve dois momentos de reação das esquerdas (tanto as partidárias, quanto as não-partidárias): primeiramente, como alguém que vê um sonho se realizar, o deslumbramento e o entusiasmo ativo em relação às centenas de milhares de pessoas que invadiam as ruas — finalmente chegara o ‘grande dia’, quando a esquerda poderia surfar na onda progressista da multidão e impor sua própria agenda política ao país, à revelia da correlação sócio-institucional de forças. Num segundo momento, entretanto, o rosto daquela multidão se desfigurou, as cores de suas bandeiras, antes vermelhas, ganharam tonalidades verdes e amarelas e grassou a rejeição pelos partidos — mormente os de esquerda, únicos à vista e ao alcance dos manifestantes –, as pautas antes claras e inequivocamente ‘de esquerda’ metamorfoseando-se em um mosaico de desejos e vontades (nem sempre ao gosto daqueles que sempre estiveram na rua, mesmo quando o ‘gigante’ sequer sabia que dormia).

O sentimento era (e ainda é) de perplexidade diante de uma emergência simplesmente miraculosa, sem qualquer previsão por perto de nenhum dos atores até então engajados na luta política. Diante de tal hesitação, este blog arriscará uma hipótese sobre as duas últimas semanas no Brasil, semanas que aceleraram nosso tempo histórico, entre o pânico e a esperança: a multidão que saiu às ruas não está insatisfeita com a situação do país dos últimos 10 anos (como é o diagnóstico-desejo da oposição partidária e midiática). Está insatisfeita com o país tout court, ou seja, em todos os seus quase dois séculos de existência. O que os manifestantes que vão às ruas desejam é, a um só tempo, mais e menos lulismo.

O que é o lulismo?

Por lulismo se convencionou designar, nos últimos anos, o conjunto dos fenômenos que conjugados caracterizam a economia política promovida pelo Partido dos Trabalhadores ao longo da década em que esteve à frente do governo federal. Segundo seu maior teórico, André Singer, o lulismo seria uma pactuação conservadora — destinada a minar a resistência do eleitorado mais pobre, menos inclinada a apoiar programas de transformação social de cariz mais radical e acelerado — cujo objetivo seria promover um reformismo fraco, gradual, na sociedade brasileira.

Tal economia política caracterizou-se pela manutenção do enquadramento neoliberal da política econômica levada a cabo por FHC (juros altos, superávits primários sucessivos e câmbio flutuante) e, ao mesmo tempo, pela promoção de inflexões à esquerda: política de valorização real do salário mínimo, instituição de programas de transferência de renda (cujo caso mais bem sucedido é o Bolsa Família), uma política cultural gerida a partir de perspectivas inovadoras, a democratização via cotas raciais e sociais, bem como por programas de bolsas de estudos, do acesso ao ensino superior, oferta de crédito para setores mais pobres da população através de mecanismos como o crédito consignado, entre outras.

Os resultados eleitorais, sociais e econômicos são bem conhecidos. Em 2010, Lula foi capaz de eleger uma sucessora desconhecida do eleitorado brasileiro — sua então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. E os indicadores do país em termos de criação de empregos formais (19,5 milhões somados os governos Lula e Dilma), redução da pobreza extrema e mesmo da desigualdade de renda fizeram a década do PT no poder ser denominada pelo IPEA como a década inclusiva, a desigualdade, segundo o índice de Gini, recuando para o mais baixo patamar histórico desde as primeiras estatísticas disponíveis (da década de 1960).

Dilma e os limites da governabilidade lulista

Os resultados apresentados acima, entretanto, não vieram a um preço politicamente baixo: a pactuação conservadora exigiu — além do próprio rebaixamento do programa histórico do PT, bem menos moderado — inúmeras concessões e o termo ‘governabilidade’ virou lugar comum no discurso de petistas dos mais diversos matizes. Era necessário que demandas e bandeiras históricas da esquerda brasileira fossem engavetadas temporariamente ou mesmo negligenciadas abertamente para que o pacto de classes não fosse ameaçado.

Enquanto o governo Lula conseguiu arbitrar soluções criativas para os impasses da coalizão bastante heterogênea de governo (em cujas fileiras se podem encontrar da FIESP ao MST e de organizações feministas e LGBTTs a líderes evangélicos conservadores) — a despeito de realizar avanços sempre dentro de limites bastante estritos –, em parte graças ao período de bonança econômica, em parte por uma gestão política mais eficiente, o governo Dilma (cuja base parlamentar é ainda maior) se mostrou incapaz de inventar novas possibilidades para a luta política nos limites da institucionalidade — sua ‘coalizão baleia’, nas palavras de Wanderley Guilherme dos Santos, só foi capaz de ‘parir sardinhas’. Limitando-se a gerir um limiar mínimo de diferenciação ante a oposição neoliberal, no governo Dilma se assistiu a retrocessos como a cessão da presidência da CDHM da Câmara dos Deputados a um pastor evangélico racista e homofóbico, a ampliação das alianças à direita (como a nomeação de Afif Domingos para a Secretaria da Micro e Pequena Empresa — cargo que ele divide com o de vice-governador de São Paulo em chapa com… Geraldo Alckmin, do PSDB!) — e o convite para nomear para a Secretaria de Educação Básica do MEC uma ex-ministra de FHC, notória neoliberal, entre outras coisas (para um texto mais detalhado sobre o desastre da governabilidade durante o mandato de Dilma conferir outro texto do blog). Tudo isso sem que se assistisse a inflexões à esquerda — salvo por medidas burocráticas importantes, sem maior apelo (mesmo a redução dos juros a patamares históricos se revelou insustentável nos últimos meses)– , que permitissem equilibrar e apaziguar o interior da coalizão.

Num arco mais longo, o fisiologismo da política brasileira, muito bem instalado no chamado ‘presidencialismo de coalizão’, permaneceu intacto, o quê somado aos frequentes casos de corrupção — devidamente amplificados pela mídia oligopólica — desgastou ainda mais o sistema representativo. Os acordos de gabinetes pareciam não mais se importar com a opinião pública (a eleição para a presidência do Senado, mesmo com a pressão contra Renan Calheiros, seguiu o seu curso placidamente). Até que a multidão se levantou, demandando mais.

A composição social e os desejos da multidão

A multidão brasileira que emergiu nas ruas nas duas últimas semanas em ondas tão diversas quanto arrebatadoras pode ser ilustrada como uma boneca russa, em cujo interior encontramos novas bonecas menores. À primeira onda da multidão, cuja pauta era mais definida e, supostamente, mais progressista, seguiu-se uma onda que se incorporou àquela, com pauta mais difusa e plural e, para alguns setores da esquerda (até o presente momento) assustadoramente udenista e nacionalista, sendo capitaneada nas redes e nas ruas por militantes e organizações de direita e até fascistas. Mas quem, de fato, integra essa multidão?

Alguns sinais nos ajudam a localizá-la social e produtivamente. Tomados os estopins das revoltas em diversas partes — o reajuste dos preços das passagens de transportes urbanos — e as formas e mecanismos de mobilização — a internet — fica sinalizada a participação, sobretudo, da juventude urbana. Da mesma forma, os gritos por melhores serviços públicos de saúde e educação denotam uma juventude receosa ‘de não poder manter o padrão de vida da família e (…) de não ver realizada sua esperada ascensão social’, segundo Marcelo Ridenti, para quem se trataria de ‘uma massa de jovens escolarizados, com expectativas elevadas e incertezas quanto ao futuro, sem encontrar pleno reconhecimento no mercado de trabalho nem tampouco na política.’ Da mesma forma, a juventude também foi caracterizada, por Giuseppe Cocco, como integrante da ‘nova composição do trabalho metropolitano’, substituto de fato e de direito do engodo da ‘nova classe média’. Trabalhando ‘diretamente nas redes de circulação e serviços da metrópole’, esses jovens sentem na pele a vida precarizada (alguns integram mesmo a geração ‘nem-nem’) das grandes cidades brasileiras. Algumas pistas para compreender o que a multidão desejaria ver concretizado num futuro próximo…

Em algumas notas sobre o assunto, nossa suposição era de que se tratava de uma multidão auto-organizada a partir das redes sociais, majoritariamente a-partidária e, mesmo, anti-partidária, cujo desencanto com a forma partido, acabou por responsabilizá-la pelo emperramento das instituições representativas brasileiras. Mais ainda, intuímos que o levante brasileiro expressaria a crise da representação política que grassa por todo o mundo e que já havia se apresentado em outras mobilizações, como na Espanha do 15-M e na recente revolta turca. Recapitulando o crescente emperramento das instituições políticas sob os limites da governabilidade lulista, não fica difícil entender o total descolamento existente entre os cidadãos e os partidos. Mas, além disso, é preciso notar que as formas e mecanismos de exercício dos direitos políticos remontam ao século retrasado. E convivendo com formas de comunicação em tempo real… o descompasso não poderia ser mais notável.

Acuada em um sistema representativo pouquíssimo oxigenado, a juventude brasileira — supostamente despolitizada até então — foi à ruas pelo direito à política e, mais ainda, pelo direito à outra política, menos amarrada nos conchavos interpartidários e elitistas, mais participativa. Da mesma forma, em situação precária diante da vaga neoliberal que exacerba o individualismo e lhes nega um futuro esperançoso, os jovens, bem como outros grupos (incluindo-se aí, por exemplo, os movimentos sociais por moradia), se articularam nas redes e foram às ruas pelo direito ao futuro fora do esquadro da mercantilização da vida.

‘Mais e menos lulismo’: à guisa de conclusão

A juventude precarizada que, majoritariamente, foi às ruas deseja mais e menos lulismo. Mais lulismo, pois ela é resultante do pujante processo de mobilidade social desencadeado no Brasil dos últimos dez anos, a primeira geração de milhões de famílias que chegam pela primeira vez ao ensino superior, a primeira geração incluída na chave do consumo de massas — porta de entrada para a cidadania efetiva –, ou seja, essa juventude conhece, em parte, os benefícios produzidos pelo governo de centro-esquerda que mantém a hegemonia eleitoral no país.

E também menos lulismo, porque, conhecendo a despolitização da última década — com pouquíssimos enfrentamentos políticos abertos — e o descolamento dos partidos em relação às massas, não enxerga horizonte de avanços com o passo cada vez mais lento do reformismo fraco, tônica do PT, principalmente, nos últimos três anos.

A surpreendente irrupção da multidão de jovens precarizados nas ruas, aliás, não poderia vir em melhor hora para o próprio Partido dos Trabalhadores que, cada vez mais enredado nos jogos de aliança e repartição do Estado brasileiro, já havia esgotado praticamente toda sua potência política transformadora, enquanto acumula retrocessos em diversas matérias consideradas bandeiras não-negligenciáveis da esquerda, como os direitos indígenas, LGBTTs, das mulheres, etc.. A transformação proporcionada pelo pacto lulista foi significativa, mas os meios empregados corroeram paulatinamente a capacidade de inovação, de produção do inesperado em política. O inesperado veio então ao encontro do Partido dos Trabalhadores, pedindo passagem.

Os filhos do lulismo sabem melhor que os pais (do lulismo) que só mais direitos, como a garantia do acesso a direitos constitucionais como saúde e educação e produção de direitos associados à mobilidade urbana, parte integrante do direito à cidade e associada às políticas culturais — disseminadas por Gil e Juca nos dois governos Lula –, bem como o incremento de formas participativas de política e a eliminação de graves distorções do sistema político e eleitoral brasileiro pode fazer o lulismo superar a si mesmo, oxigenando a política do partido e da esquerda do país.

À beira do colapso, o lulismo se vê na iminência de ter de se articular à potência política das ruas, onde os jovens gritam por mais e melhores direitos, como forma de constituição de uma nova agenda progressista para a próxima década: a década dos direitos. Que os pactos de governabilidade cedam o lugar, desloquem-se ao fundo da cena, e deixem o protagonismo para os pactos por saúde, educação, transporte, uma outra política, em suma, direitos… ao futuro. Para o lulismo e, para eles, seus filhos.

Os gênios da realpolitik, medíocres da política real

Gravata azul, gravata vermelha... faz diferença?

Gravata azul, gravata vermelha… faz diferença?

Entre a realpolitik dos gabinetes e a política real da multidão nas ruas, o Partido dos Trabalhadores parece definitivamente condenado a, doravante, se restringir aos pactos de governabilidade, condenando seu ‘reformismo fraco’ (na análise de André Singer) à total imobilidade e consequente perda de qualquer potência política transformada, constituinte — bem como às resultantes eleitorais que um tal quadro pode render ao partido.

O anúncio e chamamentos feitos pelo partido para ‘ato de apoio a Dilma’ fazem duvidar, tamanha a mediocridade da capacidade analítica que parecem respaldá-los, se o partido não enxerga além de todos que, nos últimos dias, vem acompanhando — com medo ou entusiasmo — a multidão irromper, em ondas cada vez maiores, nas ruas. Apenas informações novas, inacessíveis à maioria, podem justificar um passo esdrúxulo como esse. E esta não é a primeira prova da mediocridade de análise de situação que o PT deu durante a marcha dos últimos acontecimentos.

Ao tergiversar por dias em relação aos protestos, o prefeito Fernando Haddad e o PT, conseguiram perder uma excelente oportunidade de tornar visível a distinção entre a direita neoliberal e a esquerda governista. A assimilação do PT ao Estado, em processo de verdadeira simbiose, parece ter engessado completamente o partido, amarrando-o nas teias da institucionalidade. O cúmulo da insensatez política se deu ontem (19.06.2013) quando Haddad, após repetir algumas vezes a impossibilidade de se revogar o aumento da tarifa, apareceu, no Palácio dos Bandeirantes (casa do governo tucano paulista) para anunciar conjuntamente a Alckmin a… redução das tarifas. À perspectiva de se diferenciar do PSDB, demonstrando afinação com as ruas, o PT preferiu conduzir uma concertação nacional entre as esferas institucionais de poder, concedendo a revogação dos reajustes das passagens nas capitais mais importantes, como forma de tentar estabilizar a situação.

Como salientamos em texto anterior, apressam-se os que entregam a multidão das ruas ao udenismo e ao golpismo, sem ao menos promover o cabo-de-guerra ideológico na multidão (nunca sobre ou a respeito dela). O movimento dos movimentos é heterogêneo e comporta pautas neutras, politizáveis desde qualquer ângulo do espectro político. Ou a corrupção se tornou um tema da direita a priori? O ódio à máfia midiática não é politizável desde a esquerda? Por que não promover a reforma política, com financiamento público de campanha, ampliação da participação democrática, transparência do poder institucional, entre outras coisas? Por que não enfocar o caráter monopólico e autoritário da mídia brasileira, propondo uma lei de democratização da mídia? São questões de ângulo, não de substância.

Se em outro texto anterior assinalamos a ‘urgência que se apresenta ao PT se este ainda pretende ser um canal de representação do campo da esquerda no Brasil: recuperar sua capacidade de se articular – e não os dirigir, conciliando pelo alto vetando e circunscrevendo discursos e práticas – aos movimentos sociais, cooperando com estes ao fornecer as instâncias representativas do Estado como trincheiras para defender direitos já existentes e para avançar na criação de outros mais’, os recentes episódios são claros ao demonstrar que o diagnóstico petista (ou pelo menos de suas cúpulas) caminha em sentido por tudo oposto, apostando na apatia política.

Com a convocação de ato em defesa de Dilma, o PT extrapola mesmo esse cenário e essa opção, cometendo um erro que pode custar caro ao partido. Até o momento não havia consistência real no golpismo e no udenismo das manifestações por todo o país. O PT parece querer dar aos movimentos uma pauta comum, construir-lhe um inimigo unívoco, jogando a multidão no colo da direita partidária e midiática. Que fique o ensinamento e que o PT encerre ou minore a confiança aparentemente inabalável no marketing político como forma de comunicação. Pode ter dado certo nas últimas eleições, mas certamente já se provou equivocado em tempos de multidão. Os gênios da realpolitik provaram ser os medíocres da política real.

Algumas notas sobre a multidão brasileira

A multidão, com mais de 100 mil pessoas, marchou no Rio de Janeiro.

A multidão, com mais de 100 mil pessoas, marchou no Rio de Janeiro.

O dia 17 de junho de 2013 ficará marcado por diversas manifestações e protestos por diversas capitais do Brasil. Segundo estimativas, mais de um milhão de pessoas foram às ruas em doze capitais do país. Se este dia se notabilizará como marco histórico de uma onda maior de protestos que despejará multidões mais consistentemente nas ruas e se estas últimas conseguirão racionalizar objetivos mais claros é impossível prever.

Abaixo enumero algumas notas e impressões sobre o processo recente de construção coletiva da multidão brasileira:

I. ‘Sem partido!’ — No Rio de Janeiro – e, a julgar pelas informações encontradas nas mídias sociais e corporativas, também em outras cidades, como São Paulo – há um forte sentimento anti-partido nas manifestações. Apressadamente já se conectou essa tendência a uma captura dos processos pelo udenismo característico da política brasileira. Em relação a esse ponto é necessário fazer algumas distinções importantes, quais sejam: em primeiro lugar, o udenismo não é tão somente uma forma de manobra ideológica da direita brasileira, mas uma denominação que pode recobrir, com certa adequação, a percepção difusa da dinâmica política que se deixa ouvir na murmuração cotidiana, nas conversas entre familiares, entre amigos, nos bares, por exemplo. Em segundo lugar, é preciso alargar o horizonte da análise e notar que a maioria dos protestos integrantes do recente ciclo mundial de lutas em países de democracia parlamentar (o OWS, o 15-M, as recentes mobilizações na Turquia, entre outros) incluem uma forte tendência de crítica da política representativa, manifestando-se numa verdadeira crise geral da representação política como forma de relação entre as partes envolvidas na dinâmica institucional da democracia. Cabe lembrar que essa crítica não implica necessariamente apoliticismo, mas uma exigência pela recomposição de um ambiente institucional menos deformado e distorcido ou o vislumbre de um horizonte novo na dinâmica política (os partidos não existem desde o livro do Gênesis, é bom que se lembre).

II. O aprendizado da multidão — O segundo ponto a destacar é que a multidão é extremamente heterogênea, incluindo partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais – enquanto sujeitos coletivos institucionalizados -, mas também, e sobretudo, se forjando nas redes (sociais) e nas ruas, através das novas capacidades de mobilização oferecidas pela internet. Trata-se de uma mobilização de novo tipo, capaz de, sem partir de nenhum centro localizável, fazer emergir uma multidão auto-organizada e plural nas ruas. Assim, se há ressalvas a fazer quanto a rejeição de movimentos institucionalizados (sobremaneira os partidos políticos), é bom que se lembre que aqueles que encarnam os fluxos subterrâneos de revolta, latentes desde certo tempo, e que agora convergem nas grandes passeatas e mobilizações, carecem da experiência prática da política nas ruas e, portanto, aprenderão no curso dos movimentos e marchas (com o apoio daqueles mais cotidianamente engajados com questões de mobilização, militância e ativismo) a canalizar as expressões da revolta que os levaram a sair de casa. O trabalho da esquerda sobre a multidão é um trabalho na multidão (seja nas redes, seja nas ruas).

III. Da utilidade e da desvantagem da história para a multidão — A emergência das multidões por todo o Brasil deixaram inseguros todos aqueles que conhecem a história recente do país. Muitos estão preocupados com a possibilidade dessas revoltas serem instrumentalizadas pela direita midiática – que, após um momento de reação padrão (incitação à repressão e criminalização dos protestos) foi surpreendida pela potência das mobilizações, passando a adotar um tom mais cauteloso e defensivo, passando a pretender dar direção intelectual aos protestos – e não cansam de relembrar a conjuntura que antecedeu o golpe de militar de 1964. No seu ‘O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte’, Marx escreveu que o passado oprimia como um pesadelo os cérebros dos vivos, bem como, comentando Hegel, que a história, seus personagens e fatos só se repetiriam duas vezes: a primeira como tragédia e a segunda como farsa. O que a primeira de suas observações tem a dizer sobre a atual situação é que todo passado que promove não a ponderação sobre os rumos, mas a inação e o medo, é opressor: intoxicada de memória a multidão não marcha. E a segunda, que os alertas (por vezes realmente temerosos, mas em outras ocasiões por pura canalhice política) tem de cessar ante a incapacidade da história em se repetir (e é esse o recado de Marx). O que acontece hoje é a emergência de uma tensão e de um limite, ambos prestes se romper. Nessa hora, a história precisa deixar de ser patrimônio, precisa ser expropriada pelos atores, em nome do futuro.

O PT, a realpolitik e a política real do acontecimento

Fernando Haddad discursa para movimentos por moradia (abril/2013).

Fernando Haddad discursa para movimentos por moradia (abril/2013).

As recentes manifestações ocorridas por várias capitais do Brasil — contra os aumentos nas passagens de transporte público (mas significando também a luta pela mobilidade urbana e pelo direito à cidade — provocam uma série de questionamentos, dentre os quais: estaríamos adentrando no Brasil o ciclo de lutas sociais que desde 2011 na Tunísia leva milhares de pessoas às ruas em protestos contra a perda de direitos, a crise econômico-financeira, as violações de direitos de toda espécie, a violência dos aparelhos estatais, as políticas de austeridade impostas pela banca mundial, penalizando sempre os despossuídos e os mais pobres? Iniciaria-se um novo ciclo de lutas sociais e políticas no Brasil no esgotamento do ciclo que desde há 30 anos animou as primeiras conquistas da redemocratização? Ou estaríamos vendo apenas um abalo coordenado, mas episódico, da ordem capitalista de novo tipo que se instaurou no Brasil desde o advento do lulismo em 2003? Certamente todas essas questões estão entrelaçadas e merecem exames individuados. Nosso enfoque, todavia, não recairá sobre nenhuma delas, mas sobre o impasse em que se coloca o Partido dos Trabalhadores, a cada dia mais enredado nas intrigas e jogos de poder da política tradicional, designada por seus militantes como a ‘realpolitik’, a única possível, fora da qual apenas caminharíamos rumo a um abismo.

De que se trata quando designamos a atual situação do PT por ‘impasse’? Da crescente incapacidade do partido em se movimentar no campo da política do real, a política dos acontecimentos que rompem os limites do possível, que introduzem o inesperado nos diversos enfrentamentos sociais e políticos que perpassam o Brasil contemporâneo. Após 10 anos encastelado no cume da estrutura gerencial do Estado brasileiro, o partido parece ter perdido, por completo, a capacidade de lidar com aquilo que é o avesso da lógica administrativa das instâncias estatais: a emergência dos setores organizados da sociedade como multidão nas ruas.

A irrupção desses setores assinala a crítica da política do estritamente possível (convém não esquecer que a política como ‘arte do possível’ é uma máxima conservadora) em favor de uma política que se oponha às técnicas de governo — que ao fim e ao cabo são, efetivamente, técnicas de dominação –, em favor de uma política em que os arranjos do possível, no campo da representação, visem o destravamento dos impossíveis, articulando-se aos movimentos que se insurgem para alargar o espectro das opções.

Tornemos concretas as abstrações: não seria importante para o país que se fizesse uma reforma política progressista, capaz de ajustar melhor o distorcido campo representativo da política brasileira? Ou, noutra seara, a regulação e democratização dos meios de comunicação não significaria uma ruptura com a hegemonia conservadora que codifica as narrativas políticas sempre sob um mesmo prisma (aquele consensual às empresas que, de forma oligopólica, dominam o setor no Brasil)?

O que se vê na reação das várias esferas de poder onde o PT tem assento é, na prática, quase indiscernível da reação de partidos e instituições de matriz objetivamente conservadora. No episódio recente das manifestações em São Paulo, promovidos pelo Movimento Passe Livre (MPL), Fernando Haddad — que, em poucos meses de governo, parecia tentar agitar o marasmo da política petista, intervindo, por exemplo, a favor de assentamento prestes a ser desocupado violentamente pela PM tucana e concedendo aumento de 79% a parte do funcionalismo da prefeitura — acumpliciou-se ao empresariado e ao governo de Geraldo Alckmin, repetindo em suas declarações o mesmo escamoteamento do tópico central do debate, ancorado na rejeição do ‘vandalismo’ (efeito colateral de protestos que é praxe da direita amplificar e enfocar) e em frágeis assertivas como a de que o aumento se deu abaixo da inflação acumulada — certamente Haddad sabe que essa não é a única variável para se avaliar a justeza de um aumento, nem o terreno sobre o qual todos, fora do espaço das decisões de técnica política, deve(ria)m assentar suas reflexões a respeito do problema. De um prefeito de esquerda se deve cobrar que pense na democratização do direito à cidade e aos usufrutos que esse direito representa para a população pobre da periferia, carente de equipamentos culturais em seus bairros de origem, por exemplo.

Uma urgência se apresenta ao PT se este ainda pretende ser um canal de representação do campo da esquerda no Brasil: recuperar sua capacidade de se articular — e não os dirigir, conciliando pelo alto vetando e circunscrevendo discursos e práticas — aos movimentos sociais, cooperando com estes ao fornecer as instâncias representativas do Estado como trincheiras para defender direitos já existentes e para avançar na criação de outros mais.

Ao longo do governo Lula, apesar dos limites da coalizão de governo (marcada fortemente pela distorcida representação da política brasileira) era possível notar um movimento pendular: avanços e recuos combinavam-se numa dialética virtuosa, capaz de promover uma orientação progressista ao Estado brasileiro. Os programas sociais de transferência de renda, a política de valorização do salário mínimo, os programas de melhoria e democratização do acesso ao ensino superior, a política cultural e mesmo as soluções arbitrais encontradas em diversos outros campos (as políticas para as mulheres e os LBGTT não se limitavam a recuos frente as pressões dos setores conservadores) denotavam esforços do partido que encabeçava a coalizão em promover micro-revoluções democratizantes. Com a eleição de Dilma, em parte pela situação econômica mais difícil, mas também por recuos nitidamente resultantes de escolhas conservadoras do Partido dos Trabalhadores e do governo federal, a capacidade de inovação política se perdeu por completo, restando apenas uma administração de um limiar de discernibilidade que se compromete a não encerrar os avanços promovidos pelo lulismo. O campo da política foi atravessado pela chantagem: o voto no PT é a única saída contra a volta dos anos de neoliberalismo.

Na última década, o governo encabeçado pelo PT foi capaz de algumas façanhas (redução da desigualdade de renda abaixo de patamares históricos, sério combate à pobreza, entre outras) e, entretanto, todas essas conquistas não impediram que o espectro ideológico brasileiro tenha entrado num movimento centrípeto irrefreável, no qual  importa mais ao PT a conquista dos setores de centro-direita (assim como ao PSDB a conquista dos setores de centro — o prova a recente tentativa de articular um programa de cotas à moda bandeirante), que a manutenção do programa e da agenda progressista que ajudou a levar o partido ao poder em 2002. Da indiferenciação do PT não resultará nada de bom para a esquerda brasileira: somente a possibilidade de que, dos interstícios da enorme coalizão lulista, se desprenda um ator capaz de fazer naufragar, por completo, o projeto de democratização de uma das (ainda) mais desiguais sociedades do planeta.

O PT precisa voltar à política real dos acontecimentos, a única capaz de animar um projeto que contemple também a prática dos acordos necessários na esfera da política tradicional, mas que não seja estruturada e pensada tão somente a partir desse enquadramento. Que esteja, enfim, aberta a sintonizar-se com as demandas do inesperado, do ingovernável; pois, a ‘governabilidade’, tópico tão caro ao discurso do petismo moderado, saiu dos salões e gabinetes e foi para as ruas.