Pedagogia da multidão

Só a luta ensina.

Só a luta ensina.

A ocupação da câmara dos vereadores do Rio de Janeiro, feita pelos trabalhadores da educação municipal, foi desfeita no fim da noite de sábado (28/09) através dos únicos métodos que os poderes constituídos da cidade e do estado demonstram conhecer: violência policial e completa arbitrariedade (a decisão de enviar a tropa de choque coube ao governador que, em resposta a pedido do vereador Jorge Felippe, do PMDB, presidente da mesma câmara, ordenou a invasão sem nenhuma ordem legal). No complemento da ação repressiva os oligopólios midiáticos cumpriram seus papéis: deram quase nenhum destaque ao fato, justificando-o com supostas provocações dos ocupantes aos policiais — nada que remotamente se assemelhe ao que se vê dos vários vídeos e imagens disponíveis ou que se lê dos muitos relatos que pululam nas redes.

Depois do episódio a greve dos trabalhadores da educação entra num novo patamar de luta. Após mais de um mês de movimento grevista (que demonstrou-se para muito além de meras questões corporativas e salariais), que colocou o confronto entre o trabalhadores e o estado em uma nova configuração — com inúmeras promessas por parte da prefeitura e da secretaria de educação –, os primeiros foram surpreendidos com a exclusão da representação sindical do processo de redação do Plano de Cargos, Carreira e Remuneração. Este último foi entregue já pronto para votação (em regime de urgência pela câmara) e, para desespero das categorias profissionais, é um verdadeiro monstrengo, um ataque frontal a educação pública da cidade (o plano inclui em seus dispositivos, por exemplo, a figura do ‘professor polivalente’, que é, nada menos que o alargamento da área de atuação dos professores especialistas — atualmente P1 — para disciplinas diferentes de sua especialidade: professores de história ministrariam aulas de português e geografia, por exemplo). Respondendo ao autoritarismo da prefeitura os professores decidiram pelo retorno à greve e passaram a fazer vigílias às portas do parlamento da cidade. A retirada do plano da pauta e consequente retorno às negociações era o objetivo imediato do movimento. Como prefeitura e vereadores da base aliada ao governo permanecessem impassíveis frente às tentativas de diálogo dos trabalhadores e a aproximação do dia da votação do plano, os grevistas radicalizaram, ocupando a câmara (na quinta) e impedindo suas sessões. Enquanto algumas dezenas deles permaneciam no interior do prédio, outros muitos (oscilando entre milhares e centenas a depender do horário) permaneciam em apoio nos arredores. Até que sobreveio a repressão.

O quê, entretanto, coloca a luta desses trabalhadores num novo patamar são os agenciamentos que tanto sua radicalização, quanto a repressão sofrida, estão efetivando. Os encontros que a luta tem proporcionado (com os acampados da escadaria da mesma câmara ou com os praticantes da tática Black Bloc — que partiram em socorro das vítimas da repressão no sábado à noite) podem ser determinantes para o sucesso do movimento, pois conformam um aprendizado político, verdadeira pedagogia da multidão que luta.

Tal deslocamento importa muitíssimo, pois articula um movimento social tradicionalmente organizado a potência das ruas. O brado por ‘mais dinheiro para a educação’, que circulava em todos os protestos, pode agora ressoar com mais força, reenergizando as manifestações e reafirmando a dinâmica constituinte que se pôs em movimento desde junho. Nesse sentido, debates importantíssimos podem ser ativados, requalificando em novas bases a discussão sobre a educação em tempos de capitalismo cognitivo (nos quais a produção do saber não é uma preparação para a integração de mão-de-obra nas cadeias da produção e da circulação econômica, mas já a própria produção de um substrato comum de conhecimentos, práticas — de vários saber-fazer — expropriados pelo capital numa dinâmica que açambarca toda a vida). Na educação transformadora contemporânea não se produz conhecimento para poder resistir, mas se re-existe na própria produção de conhecimento.

Esse deslocamento não é apenas uma questão de ordem teórico-pedagógica, em sentido estrito, para os trabalhadores envolvidos com a educação. É um ponto verdadeiramente fundamental, de cuja compreensão depende o próprio futuro da luta desses profissionais. Pois, enquanto estes continuarem entendendo ensino e luta como processos dissociados — ou compreendendo, no máximo, que as lutas sejam uma dimensão política do aprendizado disciplinar ‘neutro’ –, estarão falhando em compreender uma dimensão constitutiva do seu próprio ofício (e do seu mundo), na época em que vivem: o fato de que a luta, o ensino, o trabalho, a própria vida, são partes de um mesmo tecido vivo, no qual tudo se mistura, o tempo biopolítico, no qual viver é, já, lutar.

Aos trabalhadores da educação do Rio de Janeiro (não apenas municipal, mas também os da rede estadual e da FAETEC) descobrir-se como multidão na luta é a condição para que o seu movimento não se detenha nos impasses da política da representação (sindical ou parlamentar). Mais do que isso: é a condição para que a sua prática enquanto educadores seja potencialmente libertadora, dando impulso a uma sociedade que se democratiza desde baixo (a única democratização possível), que aprende que existir resistindo só é possível em comum, no compartilhamento das experiências e saberes.

É chegada, portanto, a hora de provar que aqueles que ensinam também são capazes de aprender, e de aprender, lutando, pois, verdadeiramente, só a luta, com tudo que ela traz (do sofrimento à alegria), ensina.

O contextualismo autoritário d’O Globo

Capa d'O Globo de 2 de abril de 1964.

Capa d’O Globo de 2 de abril de 1964.

“(…) o nome comum da práxis histórica só pode ser ‘genealogia do presente’, quer dizer, uma imaginação que traz a ser aquilo que existiu antes, da mesma maneira como constitui o ser por vir. Não se interpreta o passado, mas se experimenta.”

Antonio Negri, Kairòs, Alma Venus, Multitudo, p. 66.

As organizações Globo, após se verem transformadas em um dos alvos diletos das manifestações que povoaram as ruas de todo o Brasil a partir de junho (quando não em objeto principal de manifestações especificamente convocadas contra elas), lançaram um editorial aquiescendo do apoio dado ao golpe de 1964, instaurador de uma longa ditadura civil-militar, e manifestando que este erro ‘à luz da História’ (expressão que, como argumentaremos, é a chave para se entender a razão de não haver nenhuma confissão de erro, mas sim um ajuste histórico de posição das organizações) vem sendo debatido internamente desde há muitos anos, vindo à lume apenas agora por motivos do projeto Memória e sendo ‘chancelado’ pela ‘verdade dura’ exposta nas ruas.

Inicialmente, o texto intitulado ‘1964’, aquiesce, de forma aparentemente severa, do erro de as organizações Globo terem sustentado o golpe, afirmando que a lembrança dessa postura, sempre exercitada por insatisfeitos com ‘qualquer reportagem ou editorial’ atual, não é refutável. ‘É História’, afirma o texto. A continuidade do texto alude, entretanto, tanto aos diversos veículos de imprensa que, assim como O Globo, apoiaram a ‘intervenção dos militares’, quanto ao ‘apoio expresso em manifestações e passeatas organizadas em Rio, São Paulo e outras capitais’, ou seja, apoio da própria população. É o primeiro passo do procedimento contextualista.

No passo seguinte, O Globo reconstitui a situação histórica e política em que teria se dado a sua intervenção editorial. Em meio a Guerra Fria, a polarização ideológica entre as forças defensoras do comunismo e do capitalismo era reproduzida em todos os países e, no Brasil, ‘ela era aguçada e aprofundada pela radicalização de João Goulart’, acusado, à época, de tentar instalar uma ‘república sindical’ no país (insinua-se a cantilena do golpe como contra-golpe preventivo). Jango teria conseguido revogar o parlamentarismo (aqui, embora, se mencione que isto se deu pela via de um plebiscito, o tom é o de que Jango logrou aceder aos ‘poderes plenos do presidencialismo’ por um golpe de mão e não por delegação soberana do povo brasileiro — quase 9,5 milhões de brasileiros votaram pelo retorno ao presidencialismo e apenas 2 milhões votaram pela manutenção do parlamentarismo). Feria-se, assim, a ‘saída negociada’ (eufemismo que designa o golpe frustrado de 1961, quando, após a obscura renúncia de Jânio, Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, iniciou um movimento de resistência, a Campanha da Legalidade, que freou a iniciativa golpista ao colocar o país na iminência de uma guerra civil caso Jango não assumisse).

Com os ‘poderes plenos do presidencialismo’ Jango teria dado início a uma radicalização da conjuntura política, ameaçando atropelar o Congresso e a Justiça para promover as reformas de base ‘na lei ou na marra’. O mote, em verdade, era dos movimentos sociais, como as Ligas Camponesas de Francisco Julião, e não de Jango e de militares próximos – um pequeno deslocamento discursivo muito útil à conformação do contextualismo justificativo do golpe. Com a explosão do movimento dos sargentos, a caserna, já ‘intoxicada’ de política, teria afundando em grave crise, e se desenhou o horizonte do golpe, uma intervenção ‘cirúrgica’, destinada a apenas a restaurar a ordem, devolvendo-se o poder aos civis tão logo o ‘perigo de um golpe à esquerda’ fosse eliminado. Não foi entretanto o que aconteceu. E é O Globo que admite:

“Não houve as eleições. Os militares ficaram no poder 21 anos, até saírem em 1985, com a posse de José Sarney, vice do presidente Tancredo Neves, eleito ainda pelo voto indireto, falecido antes de receber a faixa.”

(Corta para vinte anos depois – ficar detalhando o que ocorreu, por exemplo, entre 1968 e 1974, não seria recomendável).

Em 1984, quando o golpe completava vinte anos, entretanto, Roberto Marinho publicaria um editorial assinado na capa d’O Globo. Nele — um ‘documento revelador’, de fato, como se afirma em ‘1964’ –, Marinho ressaltava a magnânima atitude do general Geisel de extinguir os atos institucionais e demais decretos ditatoriais (nada disso teria sido fruto da luta política intensa pela redemocratização, mas uma concessão de um ditador comprometido com a democracia). Além disso, destacava os avanços econômicos do regime (o arrocho salarial dos anos da ditadura e o intenso aumento da desigualdade social, apenas sanados nos últimos dez anos, não mereceram consideração) e voltava a declarar a crença de que as intervenções repressivas haviam sido ‘imprescindíveis’, não só em 1964, como ainda posteriormente, contra a ‘irrupção da guerrilha urbana’. Todo o palavrório de contestação moderada que se segue a justificação dos desaparecimentos, torturas e assassinatos (‘imprescindíveis para a manutenção da democracia!’) é tão somente a tentativa de maquiar a monstruosidade do apoio post-festum às atrocidades do autoritarismo.

A ‘mágica’ do contextualismo autoritário fica clara, entretanto, nos últimos três parágrafos do texto.

O texto d’O Globo afirma a História como ‘o mais poderoso instrumento de que o homem dispõe para seguir com segurança rumo ao futuro’ e a necessidade da contextualização na análise do ‘posicionamento de pessoas e instituições’. Invoca-se a máxima (inscrita na frase de Cícero, Historia magistra vitae est) da História como mestra da vida — que o pensamento histórico abandonou a partir da sua concepção moderna ou pós-renascentista — para assinalar que se aprende com os erros cometidos e reconhecidos.

O texto, então, opera um corte notável: os homens e as instituições que viveram 1964 são ‘história’, passado, devendo ser entendidos nessa perspectiva e, em seguida, afirma com todas as letras: ‘O GLOBO não tem dúvidas de que o apoio a 1964 pareceu aos que dirigiam o jornal e viveram aquele momento a atitude certa, visando ao bem do país.’ O que se anunciava como a confissão de um erro, através do condão da Historia e da mágica do contextualismo transforma-se, diante dos olhos incrédulos de qualquer leitor atento, numa justificação contextualizada do golpe de 1964, que, entendido nos seus termos, teria sido a ‘atitude certa’! O vertiginoso zigue-zague de opiniões prossegue no último parágrafo, quando o texto faz notar que ‘à luz da História, contudo, não há por que não reconhecer, hoje, explicitamente, que o apoio foi um erro’. O procedimento contextualista do autoritarismo está completo. Operou-se um corte que instalou o erro como acerto na História (que o texto identifica com o passado) e o acerto como erro no presente.

O editorial d’O Globo se utiliza de uma diatribe corrente na reflexão sobre a história e a historiografia, segundo a qual a história só faria sentido nos termos dela mesma e, portanto — para fins de manutenção da ‘neutralidade axiológica’ do discurso historiográfico, evitando-se sua ‘politização’ — deve ser isolada, tanto quanto possível do presente, o anacronismo (ou seja, ‘um desencontro ou encontro sem cabimento; onde valores, hábitos, crenças de épocas diferentes são tratados como se fossem as mesmas coisas’) constituindo-se no pecado, por excelência, do historiador. No lugar dele, instaura-se uma homogeneização do tempo do qual o discurso histórico pretende tratar, cortando-se os fios entre passado e presente.

O texto d’O Globo parece uma boa oportunidade para que se reflita a respeito das consequências deste tipo de pensamento (amplamente disseminado) a respeito do discurso histórico e historiográfico. Mais do que isso, uma oportunidade para que se repense a centralidade do anacronismo no interior da prática histórica, não como incômodo a extirpar, mas como condição constituinte de todo e qualquer conhecimento histórico, que deve, por conseguinte, ser articulado no interior do discurso e não, pretensamente, deixado fora dele. Pensar a história (e o presente, história in actu) como instantes infinitos em que o tempo está aberto para diversos caminhos é a única maneira de impedir que discursos justificadores do autoritarismo se insinuem por dentro da própria prática historiográfica, dando azo, e validando discursivamente, operações como a que as organizações Globo protagonizaram. Mais do que afirmações peremptórias a respeito, que fique a necessidade da reflexão sobre as apropriações da história, não só como processo, mas também como regime de verdade que se articula na supressão dos diversos possíveis entre os quais os homens e mulheres de todos os tempos decidem todos os instantes.