Contra o Brasil

Mangueira remoção

Ali onde o ‘Brasil’ foi brandido como sujeito coletivo, grassaram o massacre e a dominação.

Toda a controvérsia sobre a Copa do Mundo se sustenta sobre entendimentos radicalmente distintos sobre o Brasil. Enquanto os defensores do megaevento insistem na mistificação do Brasil como unidade, pretendendo pacificar as lutas através de discursos que operam na chave retórica do estado e da nação como entes unitários e tentando nos convencer de que ‘o Brasil crescerá’ ou que ‘a imagem do Brasil será manchada no exterior’, aqueles que se opõem aos descalabros gerados pelo mesmo evento – como as remoções que podem afetar até 250 mil pessoas nas 12 cidades-sede, o modelo de cidade neoliberal posto em marcha, a elitização do futebol, entre outros – abrem uma verdadeira fissura nessa unidade, demonstrando-a como a mistificação que ela é ao perguntar ‘Qual Brasil?’.

Ora, o Brasil não existe (e nunca existiu), senão enquanto representação que pretende(u) pacificar a manifestação da diferença diante da identidade, expressa pelas rebeldias. Foi assim na fundação do Império do Brasil, com o nosso pacificador-mor, o Duque de Caxias, tornado patrono do Exército pelo desempenho nos massacres em que se desfecharam diversas das revoltas do período. Foi assim também na repressão aos movimentos rebeldes que se seguiram à proclamação da República no final do século XIX e no início do século XX, questionadores da ordem republicana oligárquica. E se repetiu, ainda mais uma vez, durante a ditadura militar, quando ‘o Brasil’ se tornou o signo de uma unidade autoritária sustentada através da manipulação discursiva dessa unidade como comunidade na qual todos estaríamos inscritos. Ali onde ‘O Brasil’ foi brandido como sujeito coletivo, grassaram massacres, autoritarismos e dominações de variados tipos.

Que setores da velha esquerda – em parte aquela mesma que resistiu brava e heroicamente, nos anos 60 e 70, ao uso apologético e mistificador da nação, representado pela violência ditatorial dos generais – neste momento, se identifiquem pari passu ao Brasil enquanto estado e nação é apenas a coroação de um movimento que parece destinado a promover uma unidade dos contrários, numa dialética paranoica que mobiliza o pior de dois mundos. A proliferação de um debate político assentado sobre a apropriação de conceitos e esquemas da nossa tradição e história política, nesse sentido, são esclarecedores. Mobiliza-se, a todo momento, o imaginário do golpe militar e da nossa tradição golpista, não raro associando-se o atual governo a um trabalhismo de ranço varguista e, portanto, paternalista (que o neoudenismo da oposição seja sua maior arma não é, aliás, uma mera coincidência), ao mesmo tempo em que continuamos presos ao ideário nacional-desenvolvimentista aggiornado no neodesenvolvimentismo. O Brasil dos primeiros anos do século XXI parece viver enfrentando os fantasmas da sua própria modernização entre 1930 e 1985 (e se foi FHC, e toda sua megalomania, quem prometeu acabar com a era Vargas, fundando um novo Brasil, Lula e o PT parecem pretender renová-la). Em todos eles, porém, está lá o ‘Brasil’, a nação, enquanto arquitrave do progresso, não à toa mobilizado pela direita e pela esquerda..

Perguntar-se por ‘qual Brasil’ (o quê o Partido dos Trabalhadores durante duas décadas foi capaz de fazer) é, portanto, explodir o pilar simbólico que sustenta todo o edifício da ordem nacional, uma construção realizada sobre as ruínas de diversos outros Brasis possíveis, mas silenciados pela violência autoritária que atravessa toda a nossa formação. Declarar-se contra o Brasil, contra esse Brasil, contra essa unidade e na trincheira daqueles que lhe oferecem resistência é, hoje – e foi sempre -, uma questão política que determina e atravessa todo o campo político (totalmente reconfigurado após junho de 2013, um evento capaz de acelerar toda a política do país e iluminar os diversos falsos dilemas colocados até então) – pois mesmo o conflito faccional que se realiza entre a atual elite no poder e aquela que deseja retornar é um confronto cujo objetivo é saber quem melhor pode gerir a barbárie do Brasil como nação indivisa.

Fincar o pé no chão ante o rolo compressor do complexo estado-nação (que inclui governo e mídia enquanto porta-vozes do capital e a democracia representativa, dominada pelo dinheiro, enquanto plutocracia legitimada) que anuncia nas propagandas de TV que ‘somos um só’ não é dar azo ao ‘retorno da direita’. Ao contrário, é o movimento de xeque que deixa entrever (pelo movimento que se faz para escapar dele) não só que a direita jamais esteve fora do poder institucional, mas que os próprios critérios segundo os quais se definem os lados opostos em política foram modificados, não bastando definir-se ideologicamente de esquerda – colocando-se na dinâmica que relativiza cotidianamente tal definição pelas necessidades (que Nietzsche já classificou como um ‘nome mais bonito’ para a estupidez) do exercício do poder -, mas sendo preciso refundar-se essa pertença ao campo daqueles que desejam a constituição de uma comunidade política cada vez mais democrática a cada momento, no porvir, ou seja, ontologicamente.

Por esse critério, a reação da esquerda no poder ao movimento de xeque tornou todas as instituições progressistas completamente obsoletas, abrindo um tempo de criação e experimentação de novas instituições. Aos artífices destas cabe a inovação fundamental, que o grito de ‘não vai ter Copa’ – um grito contra o Brasil onde ‘somos um só’ – parece anunciar como possível: ser contra o Brasil, para ser a favor de todos os Brasis violentados, massacrados, dominados, em uma só palavra, mistificados.

O labirinto do lulismo

Labirinto

O cientista político André Singer publicou hoje, na Folha de São Paulo, um artigo, intitulado Armadilha lulista, no qual, comentando a entrevista do economista Luiz Gonzaga Belluzzo, também concedida à Folha, enuncia o problema central que se coloca, atualmente, para o governo e para o Partido dos Trabalhadores: o impasse diante de uma contradição insolúvel, uma situação na qual a urgência do aprofundamento dos avanços sociais da primeira década do PT na presidência colide com o poder do mercado financeiro, avesso a qualquer alteração do status quo que se desenhe por fora do lulismo, do pacto social de conciliação de classes que emergiu com a eleição em 2002 de Lula à presidência da república.

O diagnóstico, que também é o de outro dos mais acurados analistas de conjuntura contemporâneos – como o historiador Lincoln Secco -, é dos mais corretos, mas ao contrário de Secco, Singer parece vagar perdido dentro do labirinto do próprio conceito, o lulismo, sem ter olhos para ver que não há qualquer dialética capaz de solucionar tal contradição por dentro, capaz de conservar o lulismo e ao mesmo tempo ‘aprimorá-lo’.

Tal cegueira decorre das debilidades da própria análise que Singer produziu do lulismo e que estão colocadas no artigo de hoje ao final do texto. Singer cita a entrevista de Belluzzo para descrever as dificuldades pelas quais passa a presidenta, cujo eleitorado seria “o pessoal mais desinformado sobre as razões dos problemas, que foi submetido a um processo de obscurecimento durante séculos” e, portanto, seria incapaz de intervir em favor de uma agenda que permitisse a solução do impasse. Tal diagnóstico remete ao esforço mais geral de compreensão do lulismo feito por Singer, para quem a governança petista teria sido capaz de proletarizar o subproletariado, elevando seus níveis de renda e consumo, mas sem ‘politizá-lo’ de forma consequente e de modo a criar, para citar a formulação do artigo de hoje, “uma base social suficiente para sustentar a ruptura necessária.”

Trata-se de uma análise bastante problemática na medida em que insiste num procedimento materialista vulgar, que pretende ser possível dar vida à um corpo sem alma, ou, para falar a linguagem do velho marxismo ortodoxo, de produzir uma classe sem consciência. E não apenas por colocar o problema num enquadramento que não permite extrair dele todas as implicações – o quê talvez explique o seu segundo problema -, mas por ignorar essa classe sem nome já se colocou, de corpo e alma, no campo de batalha, protagonizando os levantes multitudinários de junho e os confrontos que se seguiram.

Assim, a procura de Singer, em pleno 2014, pela “energia capaz de quebrar as 11 varas da camisa que (…) paralisa a nação?” quando ela já explodiu em toda a sua potência em meados de 2013 é o sinal de que o lulismo enquanto horizonte é a sua própria armadilha enquanto prática. Pois aqueles que continuarem a pensar o cenário nos seus termos, após o dramático anúncio do seu esgotamento, serão devorado por essa esfinge cujo enigma já foi respondido material e historicamente. A ausência de qualquer menção aos eventos de junho, por fim, não é fruto de uma miopia temporária, mas resultado de uma cegueira estrutural, pois enxergar a multidão resolveria a armadilha do lulismo, impondo o fim do imobilismo e do compromisso histórico que o caracterizam, resultando na necessidade de abandonar o próprio lulismo não apenas enquanto instrumento conceitual, mas também como engenharia política.

Mas enquanto o analista tateia, às cegas, procurando o impulso capaz de livrar a ‘nação’ da ‘paralisia’, o governo prepara um exército de dez mil homens para combater a multidão. O governo e o capital financeiro, melhor do que Singer, parecem saber onde está a ‘energia’ suficientemente potente para alterar a correlação social de forças e radicalizar a democracia.

Para uma definição ontológica de esquerda e direita

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Ontologia política nas ruas do Brasil em 2013

O historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva publicou uma boa contribuição ao debate sobre a questão a respeito do quê é ‘ser de esquerda hoje?’ no site Carta Maior, cujo título é “A ‘esquerda’, o mapa e a montanha”. Nele, por vários ângulos, o autor fustiga a questão sobre como se (re)configuram as clivagens ideológicas no mundo contemporâneo – mais especificamente no mundo pós-queda do muro de Berlim que o autor identifica, diferenciando-se da maioria dos analistas de esquerda disponíveis no colunismo político nacional, não como momento da instauração de uma crise da esquerda, mas como momento de libertação do stalinismo e do socialismo real. Ao longo do exercício, o autor fornece alguns critérios para a atualização da díade que emergiu do ‘grande salão da assembleia’ na Revolução Francesa.

Inicialmente, caracteriza ‘direita’ e ‘esquerda’ por diferentes perspectivas diante do fluxo do tempo: a direita definir-se-ia por uma postura refratária a mudanças na ordem, no estado de coisas vigente numa determinada época. Segundo o historiador, ‘a direita teme o futuro, teme mudanças, odeia transformações. Por que? Porque sabe que o futuro é contra ela, não lhes será favorável e, acima de tudo, é incerto e mesmo desconhecido.’ Reconhecendo a multiplicidade de posições possíveis, Teixeira da Silva aponta, entretanto, para um ‘ponto comum’ entre as diversas esquerdas, que “em oposição à direita’” acreditam que “a sociedade se move, se transforma, se aprimora”. O autor, então, continua afirmando que o perguntar-se pela existência da esquerda “é perguntar se ainda acreditamos na mudança” e conclui que não existe uma “essencialidade de esquerda”, mas, sim, “a busca e a aceitação da mudança, [a ideia] que a sociedade se transforma e que o futuro será sempre melhor se quisermos lutar por isso”, a esquerda sendo, para concluir, “uma cartografia do futuro”.

A intervenção de Francisco Carlos é, sem dúvida, distinta da maioria das análises disponíveis no mainstream do debate político em curso no país por colocar a questão não apenas em termos sócio-políticos – como, por exemplo, os que seguem os critérios de aposta na liberdade (direita) e na igualdade (esquerda) como é o traço distintivo da díade proposta por Norberto Bobbio – e partidários – que insistem na polarização situação-oposição, PT-PSDB como elemento de clivagem fundamental do espectro ideológico brasileiro, critério que, não raro, resvala no governismo, no ufanismo e, mesmo, no stalinismo-, mas, ao estabelecer ‘esquerda’ e ‘direita’ como atitudes diante do tempo, em tomá-la em suas implicações ontológicas. É, portanto, nesse terreno que gostaríamos de aduzir alguns comentários.

A chave para entender a posição do autor nos parece, ao mesmo tempo, a chave que torna relativamente problemática a caracterização da ontologia política proposta. A expressão ‘cartografia do futuro’, implicando o contínuo mapeamento dos processos e temas de mudança nas sociedades se apresenta, a um só tempo, como o melhor insight do texto e o elemento que expõe a fragilidade da concepção de esquerda proposta: a ideia mesma de ‘futuro’. Pois, ao fim e ao cabo, o ‘futuro’ não existe. Para utilizar a metáfora proposta pelo autor: não há pico de montanha a ser alcançado. O quê existe é o porvir no qual se desenrolam as lutas. Esse, entretanto, não é um problema terminológico menor, mas atravessa toda a estrutura da argumentação de Teixeira da Silva, cujo argumento da confiança na mudança da sociedade como traço definidor da esquerda perpassa todo o texto, a direita desejando a mudança apenas por ocasião de reações a processos de mudança inicialmente desencadeados, ou seja, reativamente.

Qual o problema central desse critério? Ele não corresponde às esquerdas ou aos vários ramos da direita em suas manifestações concretas, mas corresponde a seus tipos ideais (que não estão errados enquanto se restringem à tentativa de traçar uma big picture, mas que naufragam diante das idiossincrasias políticas do terreno material das lutas). Nem a direita, na atualidade, se define através de uma recusa irrestrita da mudança, nem a esquerda se move apenas por intenso entusiasmo depositado na esperança de um futuro. A aceleração das mudanças sociais, políticas e institucionais nas últimas quatro décadas não foi fruto de uma bem-sucedida ofensiva política da direita que apostou na mudança, numa nova ordem social e política, no neo-liberalismo contra o estado de bem estar social e ordem que emergiu do pós-II guerra? E a postura conservadora de variados governos e mesmo partidos de esquerda ao longo das últimas décadas, cedendo ao ideário neoliberal como norte de condução de suas políticas, não insinua que o problema é outro que não estritamente a mudança?

Assim, se certamente a atitude diante da mudança ou, mais amplamente, do tempo é decisiva para uma definição ontológica de esquerda e direita, o modo como distinguimos esse abrir-se ao porvir deve ser mais refinado para que consigamos estabelecer clivagens que apurem de forma mais detalhada a díade. E nesse ponto cabe remeter a um aforismo d’O crepúsculo dos ídolos de Nietzsche:

Sussurrado no ouvido dos conservadores. — O que antes não se sabia, o que hoje se sabe, se poderia saber — uma reversão, um retorno, em qualquer sentido e grau, não é absolutamente possível. Nós, fisiólogos, ao menos sabemos isso. Mas todos os sacerdotes e moralistas acreditaram nisso — eles quiseram levar a humanidade a uma medida anterior de virtude, ‘aparafusá-la’ de volta. (…) Mesmo os políticos imitaram nisso os pregadores da virtude: também hoje há partidos que sonham, como objetivo, que todas as coisas andem para trás como caranguejos. Mas ninguém é livre para ser caranguejo. Não adianta: há que ir adiante, passo a passo adiante na décadence (– eis a minha definição do moderno ‘progresso’…). Pode-se estorvar esse desenvolvimento e, mediante esse estorvo, represar, recolher, tornar mais veemente e súbita a degenerescência mesma: mais não é possível fazer. –“¹

O modo como Nietzsche define sua concepção do “moderno ‘progresso’” é o movimento da própria modernidade que, como assinalou Marx, faz desmanchar tudo aquilo que é sólido no ar. Ora, a emergência tanto do par esquerda-direita, quanto da consciência histórica que se articula em torno da noção de progresso, são manifestações próprias da modernidade. O quê se deve questionar a partir dessa constatação e do aforismo nietzschiano é que a realização da mudança está para além dos desejos e mesmo das possibilidades tanto da esquerda, quanto da direita. O quê, de fato, lhes cabe é a tentativa de ‘estorvar… represar, recolher’, como assinala Nietzsche em relação aos conservadores,  ou acelerar o movimento das mudanças, a gestão do ritmo segundo o qual o novo irrompe, desgarrando-se do velho.

Não é, portanto, por questão de filigranas terminológicas que questionamos a ideia de futuro, mas por quê nela se cristaliza toda a estrutura argumentativa da exposição. O movimento que impele ao futuro, como o vento que carrega o angelus novus de Walter Benjamin, ao progresso é inexorável. A flecha do tempo foi lançada e não está em questão, por conseguinte, se ela será ou não disparada. O quê se coloca ao alcance dos sujeitos é, antes, o porvir enquanto instante, enquanto borda do tempo que se abre na desmedida onde somos capazes de criar novos mundos, novos valores, onde se dá a produção do comum. Estamos na ponta da seta.

Direita e esquerda, então, se distinguem pelo modo como se posicionam diante da desmedida, o momento mesmo em que o fluxo do tempo transborda no porvir, criando o novo. À criação de novos valores, de novos espaços de democracia, enfim, do comum, como respondem ‘esquerda’ e ‘direita’ em termos ontológicos? A direita opera sempre pela tentativa de controle e a instituição de uma medida que faça canalizar a produção do comum sob o signo da exploração parasitária pelo consórcio estado-mercado. As esquerdas, entretanto, já provaram ser capazes de atitudes distintas diante daquilo que poderíamos chamar de governo do porvir, embora não poucas das suas versões já tenham similarmente à direita, contribuindo para aquilo que Antonio Negri chama de “mercado mundial do transcendentalismo parasitário”. É nesse ponto que, segundo ele, “o futuro se opõe ao porvir; a estatística, ao kairòs; a repetição, à diferença.”²

É nesse sentido, portanto, que podemos falar em ‘esquerda conservadora’ e, dar o passo necessário: perguntar-se pela validade da díade direita-esquerda diante do fracasso não apenas do socialismo real, mas mesmo das experiências democráticas na Europa e na América Latina. Essa pergunta, todavia, não está corretamente endereçada, pois o quê cabe questionar, de fato, não é a substância mesma da divisão, mas seus modos de ser, pois aquilo que está hoje em questão não é a esquerda como essência, o quê sequer existe (e nesse ponto Teixeira da Silva acerta em cheio), mas a experiência concreta das esquerdas. A ontologia política, desde o ponto de vista da esquerda, é, por definição, materialista. E nesse ponto, embora sejam inegáveis os fracassos da esquerda institucional, tampouco é possível não perceber que mais do que o encerramento da própria divisão, o quê acontece na atualidade é a emergência de uma nova esquerda capaz de enfrentar o problema do ritmo do tempo desde uma perspectiva do (auto-)governo do comum e da desmedida e não do controle, do comando capitalista.

O quê, ao fim e ao cabo, importa, a fim de que se possa retirar todas as implicações das atitudes da(s) esquerda(s) diante da teleologia do comum (em nada aparentada a qualquer movimento dialético) é, de fato, o modo pelo qual elas se articulam para fazer com que esse movimento se realize segundo uma perspectiva da organização imanente do poder constituinte, e não da ordem transcendente do poder constituído³, construindo uma democracia cada vez mais multitudinária, participativa e aberta. Diante dos desafios que a contemporaneidade coloca em marcha, ser de esquerda, mais do que nunca, é estar dentro dos movimentos, lá onde se pode produzir diferença qualitativa entre o antes e o depois, lá onde como afirma Negri é possível distinguir entre diferença e repetição.

1. Friedrich Nietzsche, O crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com o martelo, IX, § 43, pp. 92-93.

2. Antonio Negri, Kairòs, Alma Venus, Multitudo – nove lições ensinadas a mim mesmo, p. 131.

3. Para a distinção entre ordem e organização: “Pela ordem do ser, da verdade, ou da sociedade, entendo a estrutura imposta como necessária e eterna desde cima, de fora da cena material das forças; utilizo organização, por outro lado, para designar a coordenação e acumulação dos encontros acidentais (no sentido filosófico, i.e., não necessário) e desenvolvimentos desde baixo, do interior do campo imanente de forças. Em outras palavras, não concebo a organização como projeto de desenvolvimento ou como a visão projetada de uma avant-garde, mas sim como uma criação imanente ou a composição de uma relação de consistência e coordenação. Nesse sentido, a organização, a composição de forças criativas, é sempre uma arte.” Cf. Michael Hardt, Gilles Deleuze – um aprendizado em filosofia, p. 17.

O evento dos comuns

‘Esta é a câmara dos comuns!’

“Os dias de poder pessoal de homens isolados terminaram (…) Mas se os dias da pequena estátua solitária terminaram, por que a era da arquitetura não deveria raiar? (…) Reconstruamos o mundo então como um salão esplêndido; vamos desistir de fazer estátuas e inscrever nelas virtudes impossíveis.

Vejamos se a democracia que enche os recintos não pode superar a aristocracia que esculpiu as estátuas. Mas existem ainda inúmeros policiais. Um gigante de azul permanece em pé ante cada porta para que não pressionemos com excessiva rapidez nossa democracia. ‘Entrada aos sábados somente entre dez e 12 horas.’ É o tipo de aviso que detém nosso progresso sonhador. E não devemos admitir uma nítida tendência em nossa mente corrupta encharcada pelo hábito, para parar e pensar: ‘Ali esteve o rei Charles quando o sentenciaram à morte; ali o conde Essex; e Guy Fawkes; e sir Thomas More.’ Parece que a mente gosta de se empoleirar em seu vôo pelo espaço vazio, sobre um nariz notável, sobre uma mão trêmula; adora o olho lampejante, a sobrancelha arqueada, o ser humano anormal, o particular, o esplêndido. Portanto, esperemos que a democracia venha, mas somente daqui um século, quando estivermos debaixo da terra; ou que por algum estupendo lance genial se combinem o vasto recinto e o ser humano pequeno, particular, individual.”

Virginia Woolf, “‘Esta é a câmara dos comuns!'” In: Cenas londrinas, pp. 69-70.

O ano de 2013 certamente ficará marcado como um ano de ruptura na história política brasileira. O irromper repentino de milhões de manifestantes nas ruas de todo o país nas chamadas ‘jornadas de junho’ determinou o fim de um ciclo histórico prolongado de lutas sociais e políticas que, iniciado com os impulsos da redemocratização, já se demonstrava insuficiente diante da atualização da agenda social e política das lutas no Brasil do início do século XXI. Um ciclo que foi capaz de promover conquistas significativas, principalmente na última década, como avanços no combate à miséria e à desigualdade social, mas que falhou diante do desafio de colocar em marcha um processo de radicalização democrática da sociedade brasileira. A democracia representativa, uma conquista importante daquelas lutas de fins da década de 70 e da década de 80, mostrou-se cada vez mais bloqueada pelas conjurações de uma classe dominante racista e autoritária que cedeu sempre os anéis para preservar os dedos, a mão e o braço forte da violência estatal, mecanismo por excelência da pacificação social à brasileira, mistificada pela imagem do brasileiro pacífico.

Junho de 2013 iluminou o nexo existente entre a manutenção de um imenso contingente de dezenas de milhões de pobres, em sua maioria negros, sob um estado de exceção permanente e o bloqueio à radicalização da democracia no Brasil. Como um verdadeiro relâmpago na noite, os acontecimentos de junho e aqueles que tem se seguido a eles, iluminaram as engrenagens da produção de subjetividades do consenso brasileiro: a violência policial, modulada em sua aplicação segundo hierarquias espaciais que delineiam um espelho das hierarquias da sociedade brasileira, configurando figuras sociais que se entrelaçam na produção do discurso securitário que – através de uma política do medo – opera como elemento promotor de sub-cidadania e desumanização; a configuração oligopolista da midiatização geral de nossa sociedade que conforma discursos e práticas à uma fictícia opinião pública reacionária e despotencializadora, reduzindo o espectro do possível da luta social; demonstrou, ainda, que a mobilização social dos últimos anos – promovida pelo produto mais representativo do ciclo da redemocratização, o Partido dos Trabalhadores em cooperação com as lutas dos diversos movimentos sociais, no governo desde 2003 – encontra-se, como notou, brilhantemente, Alexandre Mendes, em processo de ‘integração unilateral’, cuja meta é alimentar os mercados e as finanças, elevados à condição de nova representação; e ressaltando, através do grito (que se tentou rotular por ‘fascista’ ou ‘coxinha’) de ‘sem partido!’, por fim, o modo como as ruínas da representação (demonstradas à saciedade pelo alto grau de indiferenciação dos candidatos à presidência em 2014) ilustram, de fato, a representação como a ruína que ela, verdadeiramente, é, modo de organização da política que relativiza a democracia, ao invés de lhe dar expressão. Em resumo, em 2013, os mecanismos da (re)produção social das subjetividades capitalistas no Brasil foram deixados à descoberto.

É, portanto, sobre os escombros da luta anterior que os homens e mulheres comuns que foram às ruas em 2013, constroem sua própria luta, pois se na década de 1980 milhões foram às ruas para exigir eleições diretas, aqueles que marcharam em 2013 gritaram por mais, exigindo participação, exigindo uma reorganização da democracia, demandando democracia direta! Trata-se, neste novo momento, de ir além, das (eleições) diretas a (democracia) direta, as tentativas de se resolver a crise da representação com mais representação sendo, como asseverou o filósofo italiano Paolo Virno, como pregar sermões aos pássaros¹. O evento de junho de 2013 é um advento: o advento dos comuns como comuns, sem mediadores nem representantes, na política.

Assinalam isso as diversas formas e organizações de democracia direta, como assembleias populares e ocupações (amplamente vistas nas mobilizações multitudinárias que irromperam por todo o mundo, desde a Primavera Árabe até os movimentos Ocuppy, nos EUA, passando pelos movimentos europeus dos indignados espanhóis do 15M, dos trabalhadores gregos na Praça Syntagma e dos turcos mobilizados pelo parque Gezi em Istambul), demonstrativas da nova composição social do trabalho metropolitano contemporâneo: uma multidão politizada (e, no Brasil, até então interpretada como despolitizada por não corresponder em suas formas de ação política às grades interpretativas tradicionais) pelas suas próprias características formativas, pela sua própria experiência social em um mundo onde os elementos da ação política encontram-se imersas nas características do trabalho, cada vez mais comunicativo e exigente, portanto, de uma estrutura, por assim dizer, pública não-estatal, comum. Tais experimentos democráticos radicais são potentes usinas produtoras de novos ‘valores existenciais’ que, como enunciou Félix Guattari, não se apresentarão como ‘alternativas globais’, mas são sinais de ‘um deslocamento generalizado dos atuais sistemas de valor’² e a prefiguração de novas formas de governança democrática, laboratórios de uma institucionalidade do comum.

O movimento dos movimentos que se pôs em marcha desde junho de 2013, impulsionado, certamente, pelas diversas lutas que lhe precederam, certamente desempenhará um papel importante nas eleições de outubro de 2014, mas não pelas vias que a tradição analítica eleitoralista e representativa pretende ou deseja. Muito mais do que se apresentar como ‘voz das ruas’ a ser ouvida no interior dos gabinetes e palanques, a multidão, que mais do que expressão da crise da representação, é, de fato, o lugar de onde se pode propor as soluções para a mesma – não como recondução a um patamar anterior, mas como potência capaz de gerar novas formas de (auto-)governo – pode atuar incisivamente como agente politizador de um pleito de agenda pré-concebida e espectro de possíveis bastante reduzido, que provavelmente se limitará a debater, unicamente, a capacidade de gestão do consórcio estado-mercado no Brasil, sem lhe discutir as bases. Tratar-se-á, então, de politizar as eleições para deseleitoralizar a própria política, amarra que na última década conduziu o debate político-representativo no Brasil a uma zona de indistinção que configurou uma representação única (a face política do consenso) – razão pela qual qualquer que seja o operador do consórcio, pouca seja a margem de manobra para conduzir uma real reforma da sociedade brasileira.

Nesse sentido, cabe afastar, de uma vez por todas, o discurso do medo que o Partido dos Trabalhadores, ironicamente, mobiliza uma década após ser o agente da vitória da esperança sobre o medo. E, ao mesmo tempo, ter em mente que o PT não é ‘o inimigo’. Não porque ainda apresente algum potencial de composição diante da multidão, mas por que ele  o é na mesma medida em que compõe o arranjo institucional da representação. Não cabe, então, nem o apego ao petismo/lulismo como garante da mobilização social da última década, nem a eleição desses últimos como principais adversários. Nesse sentido, tanto lulismo quanto anti-lulismo, tanto petismo, quanto anti-petismo, são momentos de uma dialética que não se liberta da tradição política cujo tempo, por excelência, a multidão de junho encerrou, tornando o partido e Lula, seu principal representante, apenas fantasmas de uma ordem anterior que, certamente, ainda desempenharão papéis de monta no cenário, mas que são o último brilho pálido do velho diante da claridade resplandecente do novo. O trabalho de luto que os militantes democráticos devem fazer relativamente ao PT e a Lula implica, acima de tudo, a criação política num tempo diverso, no tempo da contingência absoluta, no kairòs, que junho inaugurou. Implica, portanto, um êxodo que faça-os se mover do terreno de lutas anterior para uma nova terra na qual poderão construir uma nova democracia.

Assim, nas demonstrações multitudinárias, que 2014 certamente verá, tratar-se-á muito mais de eletrificar os circuitos da política representativa não para influir nos seus resultados (o quê pode acontecer, mas como consequência inesperada), mas para anunciar um novo tempo no qual a política não seja refém dos pleitos, mas se desenvolva segundo a participação ativa dos homens e mulheres comuns que foram às ruas em 2013, realizando o ‘estupendo lance genial’ que Virginia Woolf – num dos mais belos textos sobre a democracia, os comuns, enfim, o comum – imaginou ser capaz de combinar o ‘vasto recinto e o ser humano pequeno, particular, individual’, de exprimir a potência do comum do singular.

1. No seu ‘Virtuosismo e revolução’ In: Virtuosismo e revolução, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008 [1994], p. 139.

2. Félix Guattari, As três ecologias, Campinas, Papirus, 1991 [1989], p. 52.

 

Lulismo e multidão

O lulismo saiu do foco.

O lulismo saiu do foco.

Desde a ascensão de Lula e do Partido dos Trabalhadores à presidência da república, o modo de condução da política do governo encabeçado pela sigla caracterizou-se pela gestão dos conflitos imanentes à uma coalizão bastante heterogênea de forças políticas e sociais. A tensão do bloco no poder incluía confrontos entre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o agronegócio representado pela bancada ruralista, as querelas sobre a política econômica que instauravam uma clivagem entre o capital industrial e o rentismo, as lutas travadas entre fundamentalistas e defensores dos direitos da mulher e da população LGBTT, entre muitas outras. Confrontado com todos esses conflitos e um quadro em que a governança do país dependia de se fazer concessões a diversos dos grupos que antes da ascensão à presidência pouca ou nenhuma relação tinham com as bandeiras históricas do petismo, o governo Lula se moveu habilmente em meio a esses muitos pontos nevrálgicos da governabilidade. O lulismo¹ caracterizou-se dessa forma, sobretudo, por uma ambiguidade criadora, capaz de encontrar brechas ou contornar tais pautas conflituosas, fazendo avançar a agenda de várias questões importantes.

No governo Lula, houve o reconhecimento da importância política e a promoção de debates sobre diversos temas de difícil enfrentamento. Para ficarmos apenas com alguns exemplos: avançou-se na problemática racial, não apenas implantando-se o mecanismo das cotas raciais para acesso ao ensino superior, mas vencendo-se de fato a batalha contra o igualitarismo liberal que não distingue entre igualdade formal e igualdade material; enfrentou-se, em diversas ocasiões, o problema dos direitos da mulher, aprovando-se, por exemplo, a Lei Maria da Penha e promovendo-se o combate à violência doméstica; no plano sócio-econômico, avançou-se na edificação de alicerces de um futuro estado de bem-estar à brasileira, criando-se o Bolsa Família, mecanismo de garantia de uma renda básica aos estratos mais pobres da população, e conduzindo-se uma política de valorização do salário mínimo que garantiu uma maior fatia da renda nacional aos trabalhadores; no campo internacional, firmou-se um compromisso de integração regional com as outras nações sul-americanas, avançando-se na construção de agendas sul-sul e, mesmo, na produção de uma maior capacidade de intervenção no cenário diplomático mundial com a associação ao bloco dos BRICs.

Em meio a todos esses, bem como de outros avanços políticos, houve, é claro, situações em que não foi possível contornar o bloqueio dos setores conservadores da sociedade brasileira e algumas questões restaram adiadas ou mesmo aceitas como derrotas compreensíveis dada a correlação sócio-institucional de forças que se apresentava. O governo Lula não promoveu, por exemplo, nenhuma grande reforma importante, não atacou o oligopólio midiático, não conseguiu efetivar uma reforma agrária digna do apoio notável que recebeu do MST e, não raras vezes, escamoteou discussões importantes sobre a laicidade do estado brasileiro, quando não cedeu, de fato, às pressões de entidades e bancadas religiosas. A despeito disso, porém, havia inventividade política capaz de promover políticas à esquerda, ainda que em meio a um cerco conservador, característico do pemedebismo² que domina a política brasileira desde a redemocratização.

Tal capacidade de manobra do consenso pemedebista foi que configurou o lulismo como potência política capaz de, dentro dos limites de um pacto social, garantir a efetivação de direitos sociais e econômicos, garantindo o acesso de dezenas de milhões de brasileiros a patamares mínimos de cidadania. O tournant eleitoral, primeiramente, na reeleição de Lula, e posteriormente do próprio PT (reconfigurando-se o próprio petismo), é a resultante desse processo: de um partido sustentado pelas classes médias, o PT passou a ser o partido dos estratos mais pobres da sociedade brasileira. Ao final do segundo mandato de Lula, a engenharia política organizada para viabilizar a governança conseguiu passar pelo teste final: o lulismo foi capaz de eleger a sucessora do presidente. Dilma Rousseff, ministra da Casa Civil durante todo o segundo mandato, foi eleita com apoio da composição sócio-eleitoral lulista.

Com a consolidação do lulismo, entretanto, veio um cenário completamente distinto e a política de coalizão emperrou. A governabilidade, seja pela patente inabilidade política do governo, pelo recrudescimento da crise econômico-financeira global que restringiu as opções do governo e do PT ou pela adoção de um modelo constituído de gestão política, tragou o lulismo para dentro da areia movediça do pemedebismo. O horizonte se estreitou na mesma razão em que o governo considerou ter encontrado um modelo (principalmente a partir de meados do segundo mandato Lula, ao qual o governo Dilma viria confirmar): o neo-desenvolvimentismo. Engessou-se o lulismo (que não por acaso ganhou seu nome e coagulou-se nesse período), anulando-se sua potência ambígua.

Os dois anos e meio do mandato de Dilma caracterizaram-se pela rendição do lulismo ao pemedebismo: a política para o campo se tornou um desastre (em 2013 o primeiro decreto de desapropriação de propriedade rural foi assinado a 25 de outubro!) para os movimentos campesinos, houve recrudescimento da violência do latifúndio, o agronegócio firmou posição de destaque na economia do país, além de ter definitivamente ganho a batalha no interior da coalizão de governo; a luta entre o conservadorismo e fundamentalismo religioso e os direitos femininos e da população LGBTT também tendeu à vitória da direita: Marco Feliciano, pastor homofóbico, machista e racista se instalou na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM) gerando protestos por todo o país, além de várias iniciativas de promoção dos direitos humanos terem sido vetadas pelo bloco governista; na área econômica, após travar com sucesso uma batalha contra o rentismo, pela redução dos juros a patamares históricos mínimos, o governo também recuou e a taxa SELIC não pára de subir, sendo tendência que se restaure o equilíbrio rentista anterior ao governo Dilma.

Não bastassem todos esses recuos e derrotas, o governo promove uma agenda amplamente conservadora em vários setores: a preparação para os megaeventos (Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016) removerá, segundo estimativa, mais de 250 mil pessoas de suas casas; a dependência do capital imobiliário, grande financiador das campanhas petistas, manieta o governo e a legislação urbana e imobiliária se move na direção da defesa da especulação e do setor privado, sem qualquer preocupação com a função social e aparentemente nenhuma sensibilidade com o déficit habitacional das metrópoles. Nem mesmo as conquistas mais significativas do governo (a grande mobilidade sócio-econômica promovida) escapam ao fechamento conservador da agenda do governo: os setores ascendentes são interpretados, falaciosamente, como ‘nova classe média’ e pensados dentro de uma lógica amplamente privatizante. Não aparece no horizonte a possibilidade de construir um welfare tupiniquim, universalizando direitos como saúde, educação e moradia. Bem ao contrário, interessa a promoção dos mercados de plano de saúde, o fortalecimento do ensino privado e do mercado imobiliário em franca expansão especulativa. No setor de transporte, visto antes como saída para a política industrial e de incentivo ao consumo, privilegia-se o automóvel contra qualquer possibilidade de uma política efetiva de mobilidade urbana. O transporte público de massas, além de continuar precário e dominado por verdadeiras máfias incrustadas no estado, torna-se cada vez mais caro.

Nessa situação irromperam as jornadas de junho: o aumento nas passagens do transporte público em Rio de Janeiro e São Paulo e a realização da Copa das Confederações (cujos gastos eram vistos pelos manifestantes como desvios de prioridade em relação a direitos básicos) foram os estopins da explosão que sacudiu o país de norte a sul durante quase 20 dias, levando milhões de pessoas às ruas.

A agenda era clara: os manifestantes, potencializados pela década inclusiva dos governos petistas, e entre gritos difusos contra um sistema representativo que cada vez mais é caixa de ressonância da sociedade, desejavam mais. A exigência de financiamento digno para saúde e educação, por um sistema de transporte público que garanta mobilidade urbana e pelo direito à uma cidade que se realize fora da esfera mercantil é o que se pode depreender dos gritos daqueles que foram às ruas (e em algumas cidades – como o Rio de Janeiro, onde a onda de protestos já dura mais de quatro meses – continuam indo).

A multidão que emergiu em junho era (e é) o produto mais potente do lulismo. O quê, entretanto, todos aqueles que sempre enxergaram o modus operandi lulista como fruto da correlação social de forças, não esperavam é que esta fosse ser deslegitimada pelo governo e pelo Partido dos Trabalhadores. A multidão (e não o conservadorismo, bastante bem ajustado à mecânica lulista) é a filha bastarda do lulismo e tanto o governo quanto o partido não se cansam de investir na captura/repressão do movimento dos movimentos.

Junho de 2013 é um marco irreversível: o PT renovou a Carta ao Povo Brasileiro (cujo início é sintomático: ‘O Brasil quer mudar. Mudar para crescer, incluir, pacificar.’) e abandonou definitivamente o impasse, a dinâmica contraditória entre suas duas almas³: aquela (‘o espírito do Sion’) que ainda sustentava as bandeiras históricas do petismo e a vencedora (‘o espírito do Anhembi’), a alma da conciliação, da pacificação, do compromisso histórico de avançar nos marcos do pemedebismo. Nenhuma ambiguidade no comportamento do governo e do partido: importa a pacificação da sociedade, pois nada pode atrapalhar os megaeventos. A hierarquia e a dinâmica do pacto social lulista tornam-se visíveis: os limites não decorrem da situação, da correlação de forças, mas da sua própria configuração.

Aquele que durante décadas foi o grande monstro, temido pela elite racista e autoritária, pugnou pela estabilidade, pela manutenção do equilíbrio social no mesmo momento em que o lulismo emperra como promotor de mobilidade social. Antes, porém, de optar por ser, definitivamente, o médico, ele fez surgir um monstro no seu próprio corpo e é esse monstro, a multidão, que impulsionará o novo ciclo de democratização da sociedade brasileira, que reanimará a potências das lutas sociais, no ocaso do ciclo da redemocratização. Junho de 2013: início de uma luta prolongada.

Notas:

1. Cf. para o lulismo: André Singer, Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador, Companhia das Letras, 2012.

2. Sobre o conceito de pemedebismo (que não se confunde com o PMDB, embora tenha nesse partido o seu mais importante representante) é fundamental cf. Marcos Nobre, O imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma, Companhia das Letras, 2013.

3. Cf. o cap. 3 do livro de Singer (‘A segunda alma do Partido dos Trabalhadores’). pp. 84-124.

Tempo de amor

A multidão do 7 de outubro.

A multidão do 7 de outubro.

“Mas tem que sofrer
Mas tem que chorar
Mas tem que querer
Pra poder amar”

Baden Powell e Vinícius de Moraes, ‘Tempo de amor’ In: Os afro-sambas (1966)

Depois das jornadas de junho, as lutas de outubro. 2013 é um ano que jamais acabará. Continuará ecoando como momento de explosão, como momento em que as mil e uma lutas que lhe precederam engastaram-se num plano de consistência, de solidez, de dureza, e fizeram emergir não o futuro, mas uma temporalidade aberta, em disputa. Um tempo que rompe a eterna sucessão modorrenta do mesmo, que na e pela luta abre as possibilidades de, no instante que se abre na borda do ser, inovar o mundo, criar um mundo novo. Outubro não confirma junho, mas o afirma. As jornadas de inverno não foram raios num céu azul, mas o prelúdio da tempestade que chegou de vez em plena primavera.

As nuvens não começaram a se carregar agora. O acúmulo das lutas sociais no Brasil remonta e faz ressoar os últimos anos. Quem vê os Black Blocs postados no front, vê o exército dos moradores do Pinheirinho. Quem se indigna com a tragédia do(s) Amarildo(s) são os milhares de membros da família Guarani Kaiowá. O belo monstro que surge nas ruas arrombando a porta da festa da ordem e do progresso em pleno 7 de setembro é a energia social e política que não será gerada na Belo Monte que destrói o Xingu.

Todas essas lutas, e muitas outras, mobilizavam antes de junho. E se elas eram incapazes de fazer rachar o consenso conservador do desenvolvimentismo, produziam pequenas fagulhas. Até que em junho o fogo pegou e o barril de pólvora explodiu. Os vinte centavos — símbolo da precariedade do transporte urbano em todas as cidades brasileiras — abriram a porta e deixaram passar a revolta popular. Mas a personagem, o espectro que nos ronda, que está conosco desde então é o de Amarildo. Pois o que temos feito desde então senão amar Amarildo?

Nós o temos amado, cada dia mais intensamente, acompanhando-o, no seu drama — que é nosso — enquanto signo daquilo que continuam sofrendo os pretos e pobres do Brasil. Amarildo tem consubstanciado o amor que temos compartilhado entre nós mesmos quando fazemos multidão. Pois, por mais que imperem as metáforas belicosas e que as cenas produzidas tenham sido, verdadeiramente, dignas de campos de batalha, o fenômeno novo não é o da guerra travada. Essa foi tão descortinada enquanto tal, pois descortinou-se a política enquanto sua continuação por outros meios. O fenômeno novo é a abertura de um novo tempo plasmado no amor das lutas.

A multidão que ganhou corpo, que se fez consistente de junho a outubro não emergiu naquele mesmo tempo que viu os ecos das indignações das lutas dos últimos anos esbarrar na indiferença geral. Emergiu num tempo novo, filho do amor, essa potência ontológica de construção do ser. Um tempo de amor, sofrido, chorado, desejado enquanto possibilidade de amar. Não um estado de coisas em que é possível amar (impossível desde a percepção de que é o próprio amor que gera o ser), mas uma temporalidade aberta em que esse amor consegue dar sentido comum às indignações, aos anseios e às esperanças de todos que compartilham da luta.

As batalhas travadas contra os poderes constituídos apodrecidos são a própria expressão potente desse amor que atravessa a multidão. É ele que produz a mistura entre Black Blocs e professores: Black Profs. É ele que retira o verniz da “paz” à brasileira que se assenta nessa violência que tortura e mata, nessa violência que faz desaparecer. Violência física e discursiva que coage pelo medo e se camufla nos lugares comuns do pacifismo como característica da brasilidade. O brasileiro, sabemos, de certa forma graças à Amarildo, não é pacífico. É pacificado. E as UPPs são tão somente um novo dispositivo dessa pacificação que institui a paz do medo garantindo a modernização capitalista. O novo moedor de carne humana que assegura a super-exploração do trabalho vivo dos pobres.

O tempo de amor que junho instaurou é capaz de abalar esse consenso secular, não apenas como figura discursiva, mas como possibilidade de ação. A descida, em manifestação, dos moradores da Rocinha e do Vidigal, bem como o protesto dos moradores da Maré contra a chacina perpetrada naquele território, foi emblemática da potência do que vem acontecendo no Brasil e, mais especificamente, no Rio de Janeiro: os pobres, sempre incapacitados de organização autônoma, encarnações mistificadas do pacifismo, marcharam pelo Leblon, fecharam a Av. Brasil… fizeram a Rocinha devir Black Bloc!

Nesse tempo que vamos vivendo o amor se apresenta aos olhos nos encontros na multidão: no seu fluxo encontramos e fazemos amigos, compartilhando, por vezes, apenas a alegria de estar juntos manifestando essa potência do encontro que nos altera, que nos faz outros. Na resistência comum contra as repressões desencadeadas pelo poder institucional que quer fechar esse portal por onde passa o inesperado.

Mas o amor não está presente apenas como condição ou sentimento compartilhador. Ele qualifica, transformando a multidão ao atravessá-la e aquela configuração potente de junho se metamorfoseou num monstro ainda mais assustador para o poder. As capas dos jornais, as imagens nas TVs o ilustram à exaustão por aquilo que elas não dizem, por aquilo que elas não mostram. O horror do poder foi ter assistido, boquiaberto de espanto, a uma multidão que, após passar por meses de luta, qualificou suas pautas através de um aprendizado político, intensificando os desejos de mudança. Não havia mais os gritos genéricos anti-corrupção, os cantos anti-violência e anti-partido. Havia pautas de transformação: LGBTs, defesa das riquezas naturais comuns contra os leilões do petróleo, o desejo de uma nova ordem que não sustente na e pela violência, entre outras, além da pauta-chave: a valorização da luta dos trabalhadores da educação contra o consórcio estado-mercado, o entendimento da educação como atividade socializada: auto-formação. Havia o desejo de derrubar governos (e não aquele que agradaria a certos setores do condomínio do poder, por mais condescendente que este seja com eles) e de se manifestar como poder constituinte capaz de alterar os rumos ditados pelo poder constituído, fazendo-o explodir na sua indiferença.

A multidão que emergiu nas ruas do centro do Rio de Janeiro neste 7 de outubro deu provas de não ser mais a mesma de junho. Sua metamorfose assustou, pois aquela monstruosidade ambígua de junho se alterou, detonando um movimento anti-poder, que articula mesmo as lutas do velho sindicalismo (ressignificadas na sua imersão no movimento dos movimentos). Os alvos ficaram nítidos e as pautas se revelaram em toda a sua radicalidade. O porvir que se abre no nosso tempo de amor é possibilidade de constituição de um sentido comum às diversas lutas. Para que possamos continuar a amar.

‘Não tem arrego!’: a batalha da Cinelândia

Aula de resistência.

Nos últimos dois dias a greve dos trabalhadores da educação do município do Rio de Janeiro cruzou o limite entre a luta organizada da formação dos consensos e a luta da afirmação do dissenso. Após a remoção da ocupação dos grevistas, no sábado à noite, realizada sob o império do arbítrio e da força, através de uma violência desproporcional que humilhou e feriu dezenas de profissionais — cuja maioria se compunha de mulheres –, a luta desses trabalhadores deixou de ser apenas por uma outra educação. Passou a ser por uma outra cidade, por uma outra política, por uma outra vida. Por um outro modo de viver a (e na) cidade, na metrópole. Desde o sábado ocorreu uma transmutação do movimento: ele foi atravessado pelo desejo de resistir. Seu objetivo passou a ser a própria luta, tacitamente criminalizada pelo tratamento que lhe foi dispensado pelo estado.

A transição entre setembro e outubro ficou marcada pela batalha da Cinelândia. Desde o dia 30 cercado por um efetivo gigantesco de forças policiais (entre PMs normais e destacamentos do batalhão de Choque), o palácio Pedro Ernesto, e, mais especificamente, a praça da Cinelândia se transformaram em cenários de guerra. O objetivo era impedir o acesso dos grevistas ao prédio, realizando as sessões de votação do Plano de Cargos, Carreira e Remuneração sem o acesso do povo, num arroubo de autoritarismo que sequer foi visto nos tempos ditatoriais (a lembrança de que o corpo do estudante Edson Luís, morto pela repressão, foi velado no mesmo palácio revela a escalada da exceção no estado do Rio de Janeiro).

Chuva de bombas de gás lacrimogêneo e efeito moral, jorros de spray de pimenta, choques elétricos e cacetadas foram desferidos contra os trabalhadores, engrossados por vários apoiadores da causa, grupos de resistência popular e os praticantes da tática Black Bloc. Mas nos últimos dois dias os professores não foram mais pegos de surpresa. Estavam ali preparados para a guerra, na qual se desnudou a política. E se na segunda-feira ainda houve o receio do confronto, na terça o que se viu foi um mar indistinto de trabalhadores e black blocs, resistindo juntos, em ondas de recuo e avanço contra as forças policiais. Durante praticamente dez horas houve resistência em vários pontos no centro da cidade.

A resistência dos trabalhadores da educação talvez permita que os movimentos sociais organizados e mesmo os partidos de esquerda (que desde junho revelaram-se incapazes de compreender a nova configuração da luta social no país) entendam que só há esperança de sucesso no atravessamento horizontal e horizontalizante da multidão que se recusa a ser rebanho. O agenciamento desse movimento de greve com as lutas da multidão indicam que a luta pela educação pode se converter no móvel de uma nova dinâmica rebelde, como aquela que levou milhões de pessoas às ruas em junho (e cuja consistência no Rio de Janeiro fez com que atingíssemos quatro meses de protestos praticamente diários em vários pontos da metrópole). Em menos de 24 horas o chamado para um ato em defesa dos educadores, no dia 7 de outubro, contra as políticas de Eduardo Paes e Sérgio Cabral, já registra quase 40 mil confirmações de presença.

Depois das jornadas de junho, as lutas de outubro? Só a mobilização e a luta dirão. Mas o aprendizado da multidão avança, sua potência se revela irreprimível e seus movimentos se demonstram cada vez mais politicamente qualificados pela luta. O que vem se forjando no Brasil nos últimos quatro meses é uma nova força de democratização da sociedade brasileira que se afirma na recusa de uma ordem institucional que se revela incompatível com os desejos de mais democracia. Que um segundo ciclo de grandes mobilizações tenha, possivelmente, na educação o seu mote de partida parece não apenas uma coincidência, mas uma indicação: há uma paideia democrática em ato.

Os meninos e meninas que estão sendo criados, formados por e nesses acontecimentos parecem ter ganho companheiros para a luta. E ontem, durante a batalha que se travou na Cinelândia e seus arredores, enquanto resistiam lado a lado, estreitando laços de admiração e amizade, eles gritavam juntos aquilo que aprenderam nas ruas, nos enfrentamentos violentos com as forças da ordem: ‘Não tem arrego!’.

Pedagogia da multidão

Só a luta ensina.

Só a luta ensina.

A ocupação da câmara dos vereadores do Rio de Janeiro, feita pelos trabalhadores da educação municipal, foi desfeita no fim da noite de sábado (28/09) através dos únicos métodos que os poderes constituídos da cidade e do estado demonstram conhecer: violência policial e completa arbitrariedade (a decisão de enviar a tropa de choque coube ao governador que, em resposta a pedido do vereador Jorge Felippe, do PMDB, presidente da mesma câmara, ordenou a invasão sem nenhuma ordem legal). No complemento da ação repressiva os oligopólios midiáticos cumpriram seus papéis: deram quase nenhum destaque ao fato, justificando-o com supostas provocações dos ocupantes aos policiais — nada que remotamente se assemelhe ao que se vê dos vários vídeos e imagens disponíveis ou que se lê dos muitos relatos que pululam nas redes.

Depois do episódio a greve dos trabalhadores da educação entra num novo patamar de luta. Após mais de um mês de movimento grevista (que demonstrou-se para muito além de meras questões corporativas e salariais), que colocou o confronto entre o trabalhadores e o estado em uma nova configuração — com inúmeras promessas por parte da prefeitura e da secretaria de educação –, os primeiros foram surpreendidos com a exclusão da representação sindical do processo de redação do Plano de Cargos, Carreira e Remuneração. Este último foi entregue já pronto para votação (em regime de urgência pela câmara) e, para desespero das categorias profissionais, é um verdadeiro monstrengo, um ataque frontal a educação pública da cidade (o plano inclui em seus dispositivos, por exemplo, a figura do ‘professor polivalente’, que é, nada menos que o alargamento da área de atuação dos professores especialistas — atualmente P1 — para disciplinas diferentes de sua especialidade: professores de história ministrariam aulas de português e geografia, por exemplo). Respondendo ao autoritarismo da prefeitura os professores decidiram pelo retorno à greve e passaram a fazer vigílias às portas do parlamento da cidade. A retirada do plano da pauta e consequente retorno às negociações era o objetivo imediato do movimento. Como prefeitura e vereadores da base aliada ao governo permanecessem impassíveis frente às tentativas de diálogo dos trabalhadores e a aproximação do dia da votação do plano, os grevistas radicalizaram, ocupando a câmara (na quinta) e impedindo suas sessões. Enquanto algumas dezenas deles permaneciam no interior do prédio, outros muitos (oscilando entre milhares e centenas a depender do horário) permaneciam em apoio nos arredores. Até que sobreveio a repressão.

O quê, entretanto, coloca a luta desses trabalhadores num novo patamar são os agenciamentos que tanto sua radicalização, quanto a repressão sofrida, estão efetivando. Os encontros que a luta tem proporcionado (com os acampados da escadaria da mesma câmara ou com os praticantes da tática Black Bloc — que partiram em socorro das vítimas da repressão no sábado à noite) podem ser determinantes para o sucesso do movimento, pois conformam um aprendizado político, verdadeira pedagogia da multidão que luta.

Tal deslocamento importa muitíssimo, pois articula um movimento social tradicionalmente organizado a potência das ruas. O brado por ‘mais dinheiro para a educação’, que circulava em todos os protestos, pode agora ressoar com mais força, reenergizando as manifestações e reafirmando a dinâmica constituinte que se pôs em movimento desde junho. Nesse sentido, debates importantíssimos podem ser ativados, requalificando em novas bases a discussão sobre a educação em tempos de capitalismo cognitivo (nos quais a produção do saber não é uma preparação para a integração de mão-de-obra nas cadeias da produção e da circulação econômica, mas já a própria produção de um substrato comum de conhecimentos, práticas — de vários saber-fazer — expropriados pelo capital numa dinâmica que açambarca toda a vida). Na educação transformadora contemporânea não se produz conhecimento para poder resistir, mas se re-existe na própria produção de conhecimento.

Esse deslocamento não é apenas uma questão de ordem teórico-pedagógica, em sentido estrito, para os trabalhadores envolvidos com a educação. É um ponto verdadeiramente fundamental, de cuja compreensão depende o próprio futuro da luta desses profissionais. Pois, enquanto estes continuarem entendendo ensino e luta como processos dissociados — ou compreendendo, no máximo, que as lutas sejam uma dimensão política do aprendizado disciplinar ‘neutro’ –, estarão falhando em compreender uma dimensão constitutiva do seu próprio ofício (e do seu mundo), na época em que vivem: o fato de que a luta, o ensino, o trabalho, a própria vida, são partes de um mesmo tecido vivo, no qual tudo se mistura, o tempo biopolítico, no qual viver é, já, lutar.

Aos trabalhadores da educação do Rio de Janeiro (não apenas municipal, mas também os da rede estadual e da FAETEC) descobrir-se como multidão na luta é a condição para que o seu movimento não se detenha nos impasses da política da representação (sindical ou parlamentar). Mais do que isso: é a condição para que a sua prática enquanto educadores seja potencialmente libertadora, dando impulso a uma sociedade que se democratiza desde baixo (a única democratização possível), que aprende que existir resistindo só é possível em comum, no compartilhamento das experiências e saberes.

É chegada, portanto, a hora de provar que aqueles que ensinam também são capazes de aprender, e de aprender, lutando, pois, verdadeiramente, só a luta, com tudo que ela traz (do sofrimento à alegria), ensina.

O contextualismo autoritário d’O Globo

Capa d'O Globo de 2 de abril de 1964.

Capa d’O Globo de 2 de abril de 1964.

“(…) o nome comum da práxis histórica só pode ser ‘genealogia do presente’, quer dizer, uma imaginação que traz a ser aquilo que existiu antes, da mesma maneira como constitui o ser por vir. Não se interpreta o passado, mas se experimenta.”

Antonio Negri, Kairòs, Alma Venus, Multitudo, p. 66.

As organizações Globo, após se verem transformadas em um dos alvos diletos das manifestações que povoaram as ruas de todo o Brasil a partir de junho (quando não em objeto principal de manifestações especificamente convocadas contra elas), lançaram um editorial aquiescendo do apoio dado ao golpe de 1964, instaurador de uma longa ditadura civil-militar, e manifestando que este erro ‘à luz da História’ (expressão que, como argumentaremos, é a chave para se entender a razão de não haver nenhuma confissão de erro, mas sim um ajuste histórico de posição das organizações) vem sendo debatido internamente desde há muitos anos, vindo à lume apenas agora por motivos do projeto Memória e sendo ‘chancelado’ pela ‘verdade dura’ exposta nas ruas.

Inicialmente, o texto intitulado ‘1964’, aquiesce, de forma aparentemente severa, do erro de as organizações Globo terem sustentado o golpe, afirmando que a lembrança dessa postura, sempre exercitada por insatisfeitos com ‘qualquer reportagem ou editorial’ atual, não é refutável. ‘É História’, afirma o texto. A continuidade do texto alude, entretanto, tanto aos diversos veículos de imprensa que, assim como O Globo, apoiaram a ‘intervenção dos militares’, quanto ao ‘apoio expresso em manifestações e passeatas organizadas em Rio, São Paulo e outras capitais’, ou seja, apoio da própria população. É o primeiro passo do procedimento contextualista.

No passo seguinte, O Globo reconstitui a situação histórica e política em que teria se dado a sua intervenção editorial. Em meio a Guerra Fria, a polarização ideológica entre as forças defensoras do comunismo e do capitalismo era reproduzida em todos os países e, no Brasil, ‘ela era aguçada e aprofundada pela radicalização de João Goulart’, acusado, à época, de tentar instalar uma ‘república sindical’ no país (insinua-se a cantilena do golpe como contra-golpe preventivo). Jango teria conseguido revogar o parlamentarismo (aqui, embora, se mencione que isto se deu pela via de um plebiscito, o tom é o de que Jango logrou aceder aos ‘poderes plenos do presidencialismo’ por um golpe de mão e não por delegação soberana do povo brasileiro — quase 9,5 milhões de brasileiros votaram pelo retorno ao presidencialismo e apenas 2 milhões votaram pela manutenção do parlamentarismo). Feria-se, assim, a ‘saída negociada’ (eufemismo que designa o golpe frustrado de 1961, quando, após a obscura renúncia de Jânio, Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, iniciou um movimento de resistência, a Campanha da Legalidade, que freou a iniciativa golpista ao colocar o país na iminência de uma guerra civil caso Jango não assumisse).

Com os ‘poderes plenos do presidencialismo’ Jango teria dado início a uma radicalização da conjuntura política, ameaçando atropelar o Congresso e a Justiça para promover as reformas de base ‘na lei ou na marra’. O mote, em verdade, era dos movimentos sociais, como as Ligas Camponesas de Francisco Julião, e não de Jango e de militares próximos – um pequeno deslocamento discursivo muito útil à conformação do contextualismo justificativo do golpe. Com a explosão do movimento dos sargentos, a caserna, já ‘intoxicada’ de política, teria afundando em grave crise, e se desenhou o horizonte do golpe, uma intervenção ‘cirúrgica’, destinada a apenas a restaurar a ordem, devolvendo-se o poder aos civis tão logo o ‘perigo de um golpe à esquerda’ fosse eliminado. Não foi entretanto o que aconteceu. E é O Globo que admite:

“Não houve as eleições. Os militares ficaram no poder 21 anos, até saírem em 1985, com a posse de José Sarney, vice do presidente Tancredo Neves, eleito ainda pelo voto indireto, falecido antes de receber a faixa.”

(Corta para vinte anos depois – ficar detalhando o que ocorreu, por exemplo, entre 1968 e 1974, não seria recomendável).

Em 1984, quando o golpe completava vinte anos, entretanto, Roberto Marinho publicaria um editorial assinado na capa d’O Globo. Nele — um ‘documento revelador’, de fato, como se afirma em ‘1964’ –, Marinho ressaltava a magnânima atitude do general Geisel de extinguir os atos institucionais e demais decretos ditatoriais (nada disso teria sido fruto da luta política intensa pela redemocratização, mas uma concessão de um ditador comprometido com a democracia). Além disso, destacava os avanços econômicos do regime (o arrocho salarial dos anos da ditadura e o intenso aumento da desigualdade social, apenas sanados nos últimos dez anos, não mereceram consideração) e voltava a declarar a crença de que as intervenções repressivas haviam sido ‘imprescindíveis’, não só em 1964, como ainda posteriormente, contra a ‘irrupção da guerrilha urbana’. Todo o palavrório de contestação moderada que se segue a justificação dos desaparecimentos, torturas e assassinatos (‘imprescindíveis para a manutenção da democracia!’) é tão somente a tentativa de maquiar a monstruosidade do apoio post-festum às atrocidades do autoritarismo.

A ‘mágica’ do contextualismo autoritário fica clara, entretanto, nos últimos três parágrafos do texto.

O texto d’O Globo afirma a História como ‘o mais poderoso instrumento de que o homem dispõe para seguir com segurança rumo ao futuro’ e a necessidade da contextualização na análise do ‘posicionamento de pessoas e instituições’. Invoca-se a máxima (inscrita na frase de Cícero, Historia magistra vitae est) da História como mestra da vida — que o pensamento histórico abandonou a partir da sua concepção moderna ou pós-renascentista — para assinalar que se aprende com os erros cometidos e reconhecidos.

O texto, então, opera um corte notável: os homens e as instituições que viveram 1964 são ‘história’, passado, devendo ser entendidos nessa perspectiva e, em seguida, afirma com todas as letras: ‘O GLOBO não tem dúvidas de que o apoio a 1964 pareceu aos que dirigiam o jornal e viveram aquele momento a atitude certa, visando ao bem do país.’ O que se anunciava como a confissão de um erro, através do condão da Historia e da mágica do contextualismo transforma-se, diante dos olhos incrédulos de qualquer leitor atento, numa justificação contextualizada do golpe de 1964, que, entendido nos seus termos, teria sido a ‘atitude certa’! O vertiginoso zigue-zague de opiniões prossegue no último parágrafo, quando o texto faz notar que ‘à luz da História, contudo, não há por que não reconhecer, hoje, explicitamente, que o apoio foi um erro’. O procedimento contextualista do autoritarismo está completo. Operou-se um corte que instalou o erro como acerto na História (que o texto identifica com o passado) e o acerto como erro no presente.

O editorial d’O Globo se utiliza de uma diatribe corrente na reflexão sobre a história e a historiografia, segundo a qual a história só faria sentido nos termos dela mesma e, portanto — para fins de manutenção da ‘neutralidade axiológica’ do discurso historiográfico, evitando-se sua ‘politização’ — deve ser isolada, tanto quanto possível do presente, o anacronismo (ou seja, ‘um desencontro ou encontro sem cabimento; onde valores, hábitos, crenças de épocas diferentes são tratados como se fossem as mesmas coisas’) constituindo-se no pecado, por excelência, do historiador. No lugar dele, instaura-se uma homogeneização do tempo do qual o discurso histórico pretende tratar, cortando-se os fios entre passado e presente.

O texto d’O Globo parece uma boa oportunidade para que se reflita a respeito das consequências deste tipo de pensamento (amplamente disseminado) a respeito do discurso histórico e historiográfico. Mais do que isso, uma oportunidade para que se repense a centralidade do anacronismo no interior da prática histórica, não como incômodo a extirpar, mas como condição constituinte de todo e qualquer conhecimento histórico, que deve, por conseguinte, ser articulado no interior do discurso e não, pretensamente, deixado fora dele. Pensar a história (e o presente, história in actu) como instantes infinitos em que o tempo está aberto para diversos caminhos é a única maneira de impedir que discursos justificadores do autoritarismo se insinuem por dentro da própria prática historiográfica, dando azo, e validando discursivamente, operações como a que as organizações Globo protagonizaram. Mais do que afirmações peremptórias a respeito, que fique a necessidade da reflexão sobre as apropriações da história, não só como processo, mas também como regime de verdade que se articula na supressão dos diversos possíveis entre os quais os homens e mulheres de todos os tempos decidem todos os instantes.

Os anéis, os dedos e a mão (invisível)

A educação parou... o trânsito da Presidente Vargas!

A educação parou… o trânsito da Presidente Vargas!

O brilho dos anéis não pode ofuscar o quê move os dedos e a mão.

A greve dos profissionais da educação municipal do Rio de Janeiro teve ontem mais um dia intenso de lutas. Concentrados desde as dez horas da manhã à frente da prefeitura, milhares deles protestaram e pressionaram por diversas pontos de reivindicação que podem ser resumidos como um grande libelo coletivo, em ato, contra a gestão educacional neoliberal praticada no município desde há duas décadas, mas que se intensificou nos anos recentes, impulsionada pelo devastador consenso que se forjou no arranjo da hegemonia pemedebista na cidade.

Após mais de quatro horas no sol aguardando a reunião entre representantes do sindicato e do poder executivo municipal (fato inédito nos cinco anos de gestão do PMDB à frente da prefeitura e que até um dia antes parecia descartado por Paes e pela SME), a assembleia instalada, sem o resultado definitivo da reunião, deliberou pela continuidade da greve e pela marcha até a Cinelândia, tomando metade da avenida Presidente Vargas e toda a avenida Rio Branco. O apoio dos passantes e das pessoas nos prédios era nítido: motoristas buzinavam e muitos acenavam desde os prédios, jogando também papel picado.

Essa nova demonstração de força parece ter minado a resistência do poder executivo. Na chegada da marcha pelo centro da cidade, na Cinelândia, às quatro horas da tarde (onde o encontro com o OcupaCâmara articulou a alegria indignada dos dois movimentos), o sindicato, desde o carro de som, já acenava com o recuo de Paes e sua burocracia. A chegada dos representantes do SEPE confirmou a expectativa: o recuo incluía o atendimento parcial a algumas reivindicações e a multidão irrompeu em merecida festa, após mais de seis horas de espera e alguns quilômetros de marcha pelo centro da cidade, num sol digno de dezembro.

O prefeito aceitou reduzir o prazo de elaboração do Plano Unificado de Cargos, Carreira e Remuneração (PUCCR) dos profissionais da educação municipal, que, a priori, seria de 90 para 30 dias; incluiu o sindicato no grupo de elaboração desse mesmo plano, estabelecendo assim um diálogo constante com as categorias; estabeleceu como premissa do mesmo plano o tempo de serviço e a formação dos profissionais, incrementando em 8% os rendimentos de todos os servidores municipais da educação (além dos já 6,75% já consignados a todos os servidores da prefeitura); além de ter agendando duas reuniões com a Secretaria Municipal de Educação (SME) para início da elaboração do PUCCR e debate sobre a orientação pedagógica da SME. Por fim, amarrou-se a execução de todos os pontos negociados ao encerramento na greve em assembléia extraordinária, concordando-se em abonar as faltas decorrentes do movimento grevista (a ser realizada na segunda-feira, 26 de agosto).

A alegria com a qual foram recebidos os diversos recuos da prefeitura é amplamente justificada: o consenso neoliberal da educação do Rio de Janeiro foi arranhado e, assustado com a força da mobilização, recuou. O que não se pode admitir é que sejam tomados como vitória definitiva. O atendimento a alguns dos pontos de reivindicação das categorias em greve é paradigmático: Paes e Costin cedem os anéis para não perderam os dedos — e a mão (invisível) com que conduzem a gestão da educação na cidade. Pior ainda, o núcleo duro da ideologia neoliberal que comanda a educação pública no município restou intocado, impedindo que se avance justamente na afirmação de outras pedagogias.

A redução da carga horária em sala de aula, aumentando-se o tempo disponível para estudo e planejamento das aulas para 1/3 do total (atualmente disponibiliza-se apenas 1/5), o quê encerraria ainda a atuação em menos escolas e turmas, aumentado o potencial de envolvimento afetivo entre professores, alunos e comunidades escolares. Da mesma forma, a política meritocrática, que, como afirmamos em texto anterior, colocam na ordem do dia as “questões de ordem estatístico-administrativa (as metas a bater e toda a tensão micropolítica que elas instauram no cotidiano escolar)”, impedindo, portanto, melhores condições psicológicas de trabalho aos profissionais da educação, ficou para ser debatida em reunião após o fim da greve, nada permitindo sequer suspeitar que haverá qualquer mudança. E, por fim, a tão desejada abertura das contas da educação, com o questionamento dos desvios de recursos do FUNDEB, por exemplo, parece já ter sumido do horizonte de reivindicações.

As concessões econômico-corporativas são apenas e tão somente o movimento de manutenção do consenso em seus fundamentos, o quê significa, simplesmente, o travamento de quaisquer tentativas de invenção de novas formas de produção do saber, a ruptura com a atual situação da educação, caso em que o Rio de Janeiro é apenas a modulação local de uma realidade global. A questão fundamental — o neoliberalismo encarnado nos seus agentes o sabe muito bem — não é tanto a repartição dos recursos na educação, mas a capacidade de conduzir esta última na conformação de corpos, mentes e corações a um conjunto mais amplo de relações sociais onde a produção comum continuará a ser espoliada em favor de uns poucos. A batalha decisiva por uma educação democrática que abale, de fato, as bases do consenso majoritário não se joga nas disputas pelo ‘investimentos na educação’ (como crê todo aquele que deposita na educação o papel salvador perante uma sociedade secularmente baseada numa brutal desigualdade sócio-racial e de gênero), mas nas garantias à possibilidade da educação como prática e aprendizado de liberdade, capaz, portanto, de inovar, abrindo brechas e forjando sujeitos coletivos capazes de construir caminhos para a resolução dos problemas sociais ali onde eles podem realmente ser enfrentados, no âmbito do comum.

O movimento grevista, que já demonstrou força de mobilização e grande resiliência, deve refletir nesses dois dias se vale a pena aceitar os anéis, ou se, ao contrário, se deve avançar sobre os dedos, tornando visível a mão que avança sobre a educação e cuja cabeça visa todo o corpo da sociedade.